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A minha folga chega ao fim. Na penumbra do quarto, sentido os lençóis frios, enquanto assisto a um programa de televisão, saboreio uma água com gás - leve, simples, humilde. Desta vez a televisão não consegue seduzir-me. Seduz-me sim, a tua imagem, viva, real, insistente no meu pensamento. E não procuro afastar essa visão.
Seria hoje. Se possível, seria hoje. Estaríamos sentados muito próximos um do outro, abraçados na meia-luz. Embalados na música tranquila, discreta, que suspira baixo. A conversa entre nós, fluída, simples, fácil, descontraída, seria apenas interrompida por silêncios intensos, plenos de significado, sem constrangimentos, preconceitos ou culpas. Nesses silêncios, os nossos olhares cruzar-se-iam demoradamente, abandonados um ao outro, confessando sentimentos, quereres, desejos, sem inibições.
O teu olhar! Não sei lutar (e nem quero!) contra o poder que tem sobre mim! Não sei se alguma vez foi criada pela humanidade uma palavra que resuma tudo o que o teu olhar, tu, por inteiro, me fazes sentir! É como se algo viesse, silencioso, mas poderoso, de muito, muito longe, de lugares desconhecidos e jamais alcançados pelo Homem, de tempos primordiais, já esquecidos, imutável, até hoje, até ao aqui e ao agora. E apenas com este fim: usar-te a ti, ao teu olhar, para eu esquecer-me a mim mesma, abstrair-me dos meus sentidos, inundar-me de algo muito maior que eu!
Quando revejo a tua imagem parece que o tempo quase pára, dentro de mim, em meu redor, e fica só a entrega, o sentimento, a vontade. O sonho… e tu. Houve uma altura. Estivemos perto. O tempo passa, opera grandes mudanças. Mas o teu olhar é igual.
Seria hoje! Dançaríamos, cúmplices, em paz com nós mesmos e com o mundo, aquela canção. E, embriagados por aquela cadência, o que tanta vez imaginei, aconteceria...
Mas não. O que imaginei, continuarei a imaginar. Tal como a tua imagem continua a insinuar-se no meu pensamento. Não é amor. Poderia vir a ser, um dia, não sei, mas neste momento é algo diferente, algo ainda mais. Não tão puro como o verdadeiro amor, mas igualmente poderoso. E anseio-te mais que nunca.
A noite avança. As constelações giram num céu escuro, alheias ao que se passa aqui em baixo, na Terra, e o universo é grande, tremendo, misterioso.
As horas avançam e o meu bom senso diz-me que o melhor a fazer é ler, escolher um livro cativante e esquecer nele este meu desalento. Contudo, a mente humana é poderosa e prega partidas. Sei que entre cada sílaba, frase, parágrafo que sentir, estarei a ver-te a ti, quase de forma inconsciente. E sei que ao virar de cada página, irei rever-te, imaginar-te. São estados de alma que escapam ao meu controlo. E não me importo por aí além... ciente do que irei, ou não, alguma vez alcançar, ao menos, nos meus pensamentos tudo posso, tudo consigo.