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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

À Hora do Chá

30.09.20 | Sandra

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A tarde vai a meio. Os raios de sol entram pelas cortinas leves e ondulantes para pousarem no verde das plantas junto à mesa. É neste altura do dia que a sala ganha uma claridade muito peculiar e que provoca um sedutor jogo de luz-sombra. Toda a divisão envolve-se num ambiente intimista, acolhedor, convidativo à introspeção ou a alguma tarefa mais calma e silenciosa.

No rádio, Solomon Burke canta "Cry to me". À minha frente tenho uma chávena de chá ainda muito quente. E para lá do chá, no frio da tarde, as copas altas das árvores que abanam loucas, empurradas por um vento forte, enquanto folhas secas varrem as pedras gastas da calçada. A canção ainda se ouve mas já os meus pensamentos estão longe. Penso no imprevisto da vida, capaz de também surpreender no bom sentido. Quando menos se espera, coisas boas acontecem, algo inesperado mas agradável, como tu. A tua imagem acompanha-me nas horas vagas do meu dia, em pausas entre os afazeres, no descanso das obrigações. E eu gosto que assim seja, lembrar-me de ti; recordar-te é sentir que estás um pouco mais perto de mim. Do quase nada, ao quase tudo.

De forma serena, discreta, impercetível, és agora sentimentos que me alegram. Esperava-te e não o sabia? Sinto-te perto, embora não o estejas. Não me incomoda tal distância, nada me incomoda em ti. Basta-me saber que existes, afetuoso, e que me é dada a possibilidade de fazer parte da tua vida, mesmo que só através de palavras partilhadas. Vou saboreando devagar o chá. Ainda não sei explicar esta sensação de te conhecer desde sempre. Serão os pontos comuns, coincidências que nos aproximam?

Lá fora o vento sopra agora com mais força. Sinto frio, o vestido que uso, embora comprido, é de tecido fino. Calço meias fofas e envolvo os meus ombros despidos numa manta leve. Já sabe bem esse conforto. Mais um pouco de chá. Vejo o fumo a libertar-se da chávena quente, a insinuar-se vagarosamente no ar, criando formas assimétricas. Relaxa-me. Leio as últimas palavras que me escreveste. Releio também poemas que um dia, muito no início, me enviaste. Poemas... quando a poesia és tu, e eu sou menina, outra vez!

Termino de beber o chá. Anseio já por palavras tuas. As saudades fazem-se sentir mas a espera é doce e suportável. Agradável, até! Há muito tempo! Pego num livro, baixo o volume da música, aconchego-me no sofá e já estou noutro mundo.

Gota a Gota

29.09.20 | Sandra

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Gota a gota invades os meus pensamentos.

Com vagares de luar insinuas-te em mim, 

E a minha paciência devasta-se incendiada,

Implora por ti.

Gota a gota és chuva que sacia a terra que o verão secou,

Abandonou, 

E que deixo cair em mim.

És a água tépida que me envolve depois

Num banho demorado e lascivo,

o cair do crepúsculo, 

Ou o perfume final que coloco aqui e ali,

No calor desta pele que te anseia.

Gota a gota invades os meus pensamentos.

E provo-te,

Permito-te ficar

Porque sim, porque quero,

Porque gosto...  

Preciso

28.09.20 | Sandra

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Hoje mimo-me. Nada conta, tudo vale. Desprendo de mim o dia que lá vai, da mesma forma que desprendo de mim as roupas que me envolvem o corpo. Acendo uma vela e relaxo num demorado banho de imersão após o qual, aconchegada na toalha de banho, delicio-me com um chá ao som de uma música calma. Visto algo confortável, rego as plantas de casa e esqueço por fim as horas, os afazeres. Recupero energias.

O tempo faz falta para aquelas tão pequenas coisas que fazem de nós seres maiores. Cantarolar, inventando a letra da canção se for preciso. Brindar a si mesmo, consigo mesmo. Pisar as folhas secas no chão. Dançar à chuva. Dedicar uma serenata à Lua. Ser criança de novo e jogar ao pião. Desfolhar um malmequer (mal-me-quer? Bem-me-quer? Muito, pouco ou nada?). Saltar dentro de uma poça de água. Beijar o retrato de alguém querido. Abraçar e abraçar-se. Dizer bom dia a um estranho. Sorrir ao espelho. Correr de braços abertos contra o vento. Dizer um sincero "Gosto de ti". Inventar uma receita.

Todas essas coisas que, quando deixamos de ser crianças, parecem desaparecer juntamente com o som de uma caixinha de música, o cheiro do pão cozido no forno a lenha, uma carta trocada, o nascer do sol por entre as figuras esguias de pinheiros distantes, o toque do violoncelo ou o apito do velho comboio que passa devagar e barulhento na estação de azulejos.

E hoje decido que é tempo de ter tempo. Também preciso.

Manhãs

24.09.20 | Sandra

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Aconchego-me no vagaroso acordar, sob o intenso sossego da hora que é feita de madrugada! Respiro a serenidade do começo do dia, quando tudo repousa fresco, arrumado, leve e limpo. Quando o mundo desperta aos poucos do seu silêncio para lá do horizonte, e os cheiros da natureza dominam o ar frio e sólido.

É como se cada novo dia afastasse, junto com a névoa, todas as dúvidas, receios, tremores e agitações trazidas pelo silêncio do escuro da noite; e com a luz dourada que aos poucos tudo abra abarca, viessem novas forças, renovadas esperanças e inquestionável confiança. Sentidas promessas de grandes vitórias.

Gosto de me entregar ao nascer do dia, de apreciar o sol a aparecer imenso por detrás dos prédios, a elevar-se acima dos telhados escuros e vazios de pássaros. Atrai-me a forma como a sua magnífica luz surpreende copas de árvores adormecidas na friagem que a madrugada tardia ainda não afastou.

Um nascer do sol espanta-me tanto quanto um ocaso. Seja em ruas de pedra, acompanhando o movimento crescente de pessoas que caminham decididas; seja no vasto campo onde quase sufoca o perfume cerrado do feno, das ervas, das flores bravas, dos pinheiros; seja na praia deserta e fria, onde bandos cinzentos de gaivotas recuam no areal tentando fugir das ondas abandonadas à zona desamparada da rebentação.

Um nascer do sol é quase uma declarada certeza de conquistas, um renascer de alma, a confirmação da fé no meu Deus, um alento que numa derradeira tentativa teima em levantar-se e prosseguir. O sol inocente das manhãs tem sempre esse poder em mim: faz-me sempre acreditar em algo maior, faz-me tentar ser melhor! E quase acreditar que sim, que consigo. Que o outono nos seja gentil! 

Luz Despida em Mim

23.09.20 | Sandra

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Anseio-te e alegro-me nas palavras que escreves, como se nelas bebesse o ânimo que me ilumina. Porquê este meu sentir que se deita sem porquês em ecos vazios de sentimentos teus? E ainda assim procuro-te sempre, tão presente que pareces estar na luz que desmente o meu escuro. E se fosses sol, lua, outras estrelas? Eu? Seria apenas mariposa que persegue a claridade que deixas caída pelo teu caminho feito de noites, mistérios e brumas...

Nem sei outro rumo senão caminhar em procura de ti pelos espaços das horas todas que te pertencem, e que tomo como minhas! Oxalá soubesse eu agir de outra forma! Mas na tua luz tão própria tornas-te oculto, subtileza, beleza, iluminado. No teu dom brilham palavras que me entorpecem, seduzem, atraem e desarmam como lâmpada que me aconchega no escuro da noite, e da qual não consigo afastar o meu olhar, porque gosto da sua claridade e brilho. Porque é que te quero tanto assim, como luz despida em mim?

22.09.20 | Sandra

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Porque alguma vez no tempo todos tivemos horas de cansaço...

Não sigo sozinha. Aquele que me fortalece acompanha-me. Nem sempre se faz ouvir, e nem sempre se mostra de uma forma mais óbvia à minha condição humana. Mas está lá, em cada letra que compõe a palavra "Acreditar". Tudo o que eu tenho a fazer é manter esse verbo em ação, conjugá-lo em todos os tempos verbais até ele se tornar parte de mim.

Nessa minha fé fundamentada renasço, renovo-me, reinvento-me. Aprendo que é preciso deixar partir algo maior do que eu para fora do meu tempo e do meu percurso, até eu poder chegar ao essencial. Porque no fundo, é tudo entre mim e Deus.

 

Quando Praia

21.09.20 | Sandra

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Está frio. O mar apresenta uma tonalidade que faz lembrar o chumbo derretido. No areal de aspeto triste, vago, só algumas gaivotas meditam a tarde cinzenta.

Não estou lá mas sei. Sei que antes de caminhares pela praia desolada, estiveste ausente de ti, perdido nos teus pensamentos enquanto olhavas para as tuas árvores adormecidas, numa tentativa de te reencontrares. E agora caminhas pela grande solidão das horas, sozinho tu também, o cabelo que lembra a espuma branca deixada pelas ondas tristes, que mal se ouvem, os sapatos a marcarem a areia fria, dura, daquele lugar mais teu que de outro alguém.

Sentas-te cansado no tronco enorme que um dia foi árvore, e que há muitos anos foi trazido por alguma tempestade para repousar, enfim, deitado na tua praia, onde permaneces por muito tempo. Quero muito sentar-me ao teu lado, observar-te bem enquanto contas histórias de lugares que não conheço, de mundos que me são alheios. Quero olhar para ti até conseguir realmente ver e ser.

Um dia tomaremos juntos nesse lugar algum chá exótico levado num termo, ao som do breve vento que enrola as ondas e carrega aos ombros gaivotas felizes. Ou brindaremos no aconchego duma tarde a algo bom que nos liga, e que chegou para ficar no amanhã.

No areal gélido repousam arrepiados pequenos ramos, folhas ou conchas partidas. E tu és o calor em praia fria, que aquece a areia húmida da maré que foi, e o Eu que amanhã serei.

Vento

20.09.20 | Sandra

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Dia de ventania. Na orla da tarde seca, calam-se sombras e colam-se rostos sem cor às janelas fechadas. Persegue-me o vento por ruas agrestes, vazias de barulho. Indomável, despenteia-me o cabelo, sacode-me a mala e serpenteia atrevido pelas pregas do meu vestido, tentando subi-lo como balão ao céu.

Em direções sem sentido, joga o vento às escondidas: por entre os arbustos assustados, o estacionamento irritado e os bancos de jardim incomodados. Derruba quase até ao chão as copas das árvores, e levanta até ao céu os balouços vazios.

Depois foge o vento para longe, a assobiar furioso, traquinas, para de novo se aproximar em crescente alvoroço. Omite os barulhos da cidade e dos carros parados no trânsito. Atira-se às folhas secas, velhas e rasgadas, que dispara em todas as direções num rodopio desordenado cheio de humores. E nos estendais que estremecem confusos, silêncios e roupas ondulantes esbarram na poeira baça levantada ao ar.

Mas à noite o vento arrepende-se desse seu frenesim e acalma-se. Senta-se ao meu lado, acanhado, acabrunhado, abraça-me pela cintura como pedindo perdão e canta-me baixinho. Olhamos o infinito e o vento é confidente, meigo, sereno. Feito agora doce brisa, desvia-me as alças do vestido e nos ombros, na minha pele sonolenta, repousa enfim das corridas do dia que lá vai, enquanto me sopra segredos ao ouvido. E eu, no vento aconchego-me, sonho voar como uma gaivota. Até chegar a ti.

Passagem do Tempo

19.09.20 | Sandra

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As horas envolvem-me em abraços sem escrúpulos. Não consigo arrancar-me aos minutos e segundos que me prendem os sentidos. Cada avançar de ponteiros marca-me sem questionar a minha vontade. Tudo o que resta é amar as horas que caminham aninhadas ao meu colo, alheias aos passos que dou.

E há horas que correm junto com cães rua abaixo, levando com elas sonhos que não guardei. Deslizam pelo alcatrão quente do sol apregoando o sentido do dever, do ter de fazer, pisando desejos meus.

Mas há ainda aquelas horas, essas outras...

São sentido de um todo, passeiam-se sem tempo por este meu coração de menina-mulher que ainda se deslumbra com a vida e o mundo. Pois o sentimento e a razão passeiam-se cúmplices de mão dada pelas esquinas da noite, acolhedora dos meus segredos. E é nessas horas noturnas que a alma se despe, boémia, solta, sem a pressa das badaladas. Nessas horas o Tempo é doce amante que escuta sem pressa palavras minhas que balançam ao embalo do vento do mundo.

Rendo-me

18.09.20 | Sandra

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Guardo para mim todas as belas palavras do mundo. Deslizo como cetim mudo entre as entrelinhas do não dito. A sombra de sentimentos ocultos em lua nova já me despe de maiúsculas seduções. Silêncio...

Sou forma nua na penumbra do papel em branco suspenso à minha frente, onde te irei rascunhar.

Em escuridão, o teu toque feito sílabas à solta. Respiração acelerada. Esqueço sinais de pontuação pois já tudo são impercetíveis murmúrios, movimentos bruscos caídos como parágrafos sem sentido. Vagueio no teu corpo, deslizo por ti figuras de estilo. Mão na mão, que a alma já se reconhece. Géneros literários sem forma num último rascunho.

De novo, o silêncio, a quebra. Reticências. Coração sem rimas, corpo extasiado. Palavras eruditas em louco amor sem título.

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