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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Não Me Esqueças Nunca

16.09.20 | Sandra

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Não te esqueças de me lembrar.
Não te esqueças de te lembrar que o mesmo céu nos abraça, que o teu sol entrega-se em mim, e que na noite partilhamos estrelas.

O mundo avança e nele avançamos juntos. Neste momento, civilizações crescem. Filhos dão os primeiros passos. Namorados dão o primeiro beijo. Olhares trocam-se entre desconhecidos num comboio que segue a alta velocidade. Algures, um médico salva uma vida, e um pedreiro sonha em regressar a casa, enquanto contempla cansado o muro terminado de construir.

Em algum ponto do mundo uma vela é acesa, um pinheiro cresce, um leão caça a sua presa. Num segundo, alguém abraça alguém e um locutor narra uma notícia importante. Uma ave migratória choca os seus ovos. Um violinista ensaia a sua pauta. Um candeeiro de rua apaga-se. Uma mariposa repousa. A brisa sopra. Uma mota atravessa a marginal. Um pavão exibe-se, enquanto no lado oposto do planeta fogo-de-artifício explode em espanto.

Algures, um grupo de velhotes joga às cartas e um menino aprende a andar de bicicleta.
O mundo não para e não permite que me detenha. Não te esqueças de me lembrar que tenho direito a interromper-me. Lembra-me que hoje posso ser melhor que ontem, e amanhã melhor que hoje. Lembra-me que tenho direito a sonhar, a errar, a fracassar, a reerguer-me e cair de novo, se preciso.

Não te esqueças de me lembrar que tenho direito a ser frágil, a ser mulher, a querer, a ousar, a fazer (de novo) as pazes com Deus e a esquecer. Não esqueças de me lembrar que tenho direito a ter direito e a pedir, a receber algo bom. A agradecer, também.

Algures, carros cruzam a estrada a alta velocidade. Uma folha cai de uma árvore. Aves migram. Num lugar, o Sol nasce. Noutro, a Lua nova brilha num céu estrelado. Em algum ponto do mundo, crianças ouvem a sua professora e idosos trocam, ainda tímidos, um beijo. Noutro ponto do globo, o mar rebenta contra as rochas. E, num deserto qualquer, camelos seguem em fila, carregando mercadorias pelo calor tórrido. Em alguma esquina, alguém envia a partir do telemóvel uma mensagem importante. Um grupo de monges budistas entoam os seus cânticos. Dois presidentes selam um acordo com um aperto de mão. Uma bailarina treina. E, algures, uma orca alimenta-se num vasto oceano. Num sítio, a monção chega arrebatadora. Noutro, um satélite é lançado ao espaço. Os embondeiros crescem. Uma gaivota pousa numa embarcação e, para lá do horizonte, uma cidade brilha à noite.

E tu, entre tudo!

Lembra-te de me lembrares que eu também sou do mundo, com tudo o que tenho de bom e de menos bom. Recorda-me, sem esqueceres, que tenho direito a olhar aquela nuvem, a esconder aquela lágrima, a pisar aquele relvado, a ouvir aquela música, a saborear aquele olhar. A ser de Deus. Tua, talvez.

Não te esqueças de me lembrar que nem tudo está perdido. Que ainda posso ser simples, humilde. Que continuo a possuir a minha Fé e o meu Deus. Que ainda tudo pode ser melhor.

Não te esqueças de me lembrar. Não me esqueças. Eu… nunca! O mundo avança!

 

Mais mundos em:  https://cronicassilabasasolta.blogs.sapo.pt/o-mundo-avanca-91329?tc=77719522469

 

 

 

 

Procura-me

15.09.20 | Sandra

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As aves já me falaram de ti com a mesma certeza que adivinhas em mim, e em passos indecisos chego agora à tua escrita de pedras soltas e brumas.
Leio-te. Sou puxada a um abraço teu feito de intuições e, tímida como brisa na tarde, deixo-te as minhas primeiras entrelinhas. Mostra então que me ouves, quando nenhum som dos meus lábios é emitido senão o das estrofes que caiem como roupas ao chão. Mostra que me ouves...

Procura-me e eu procurarei por ti também, até te encontrar enfim...

Onde Há?

13.09.20 | Sandra

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Não quero um amor qualquer!

Quero amor de estrofes, rimas!

Desconcertante, confortante,

Sem floreados nem alinhavos, ou ponteados...

Quero um amor assim!

Ofertado, feroz, feliz, rasgado.

Meigo, arrebatado!

Um supremo cruzar de almas

Ou um cruzar de corpos roucos, marginais,

Vadios na noite perdida!

E no racional do dia,

Ser amor,  ser poesia,

Escrita à secretária no sombrio da noite.

Das brumas caídas nas manhãs

Não vem sentimento esse,

Que de ti para mim um dia tanto quis...

Onde há amor assim?


Capital

11.09.20 | Sandra

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Na tarde avançada o calor aperta cada vez mais. A cidade pulsa de vida sob aquela chuva lenta e persistente que teima em cair. Os prédios e as torres mais altas, coroados por nuvens pesadas e cinzentas, têm um semblante monótono, indiferente. Transeuntes caminham apressados pelos passeios molhados e escorregadios, mãos enterradas nos bolsos e cabeça baixa, uns indiferentes ao meio, outros, impacientes e fartos daquelas ruas cheias de gente. É impossível circular sem alguém se esbarrar contra outro alguém.

Pessoas ao monte aglomeram-se ao lado do semáforo que parece determinado em não autorizar a travessia da passadeira. O grande relógio digital da torre principal mostra, entre o bloco noticioso, horas que ninguém vê. Os carros, iguais uns aos outros, avançam em marcha lenta, salpicando quem circula do lado de fora do passeio, faróis ligados e limpa para-brisas no seu movimento hipnotizante.

A chuva continua a molhar a cidade que pulsa. O semáforo muda a sua cor para verde e o aglomerado de pessoas desperta da sua letargia para atravessar finalmente a rua.
Os lojistas estão excessivamente animados e atarefados. Os cafés estão lotados. Confusão, calor, barulho, encontrões, gargalhadas, cheiros de comida que se cruzam com cheiros de perfumes. E o dia avança, picado por aquela chuva interminável e pelo calor sufocante de um verão mais quente que o normal.

Com alguma dificuldade em chegar à porta, consigo finalmente sair do café para a rua. Anseio o regresso ao sossego e frescura do lar. Caminho pelo passeio apinhado de gente. Hora de ponta. Pessoas de todos os tipos, géneros, idades, status. Faço um jogo: tento imaginar os nomes de quem me acompanha ao longo dessa caminhada e o que estão ali a fazer naquela hora confusa. Estranhos para estranhos.

Sou acordada desses pensamentos quando alguém que caminha em sentido contrário choca contra mim, ombro contra ombro, prosseguindo em passo apressado a sua caminhada. Num gesto instintivo olhei para trás. Também tu te viraste para trás para pedir desculpa pelo embate. E a cidade desapareceu. Houve um reconhecimento. Em menos de nada, passamos do espanto à curiosidade, do reconhecer, às perguntas que tinham que ser feitas. Alguém amado, cujas mudanças provocadas pela passagem do tempo foi afastado de mim. Relação que parou algures. E ali, sob uma chuva monótona, estávamos nós, estáticos, incrédulos, mudos, olhos nos olhos. A cidade meteu-se entre nós e deixei de te ver. Nessa quente e cinzenta tarde, reescreveu-se a nossa história.

 

Deus Contigo

10.09.20 | Sandra

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Quase que não sei como te descrever. Por mais que tente, ficarei sempre aquém de tudo o que de bom, mágico e belo és! Quem conseguir vislumbrar a beleza das enormes constelações na primeira hora do mundo, quando seres alados brilhavam nos céus, terá, ainda assim, só uma pequena noção de ti.

Toda a luz brilha no teu rosto quando se abrem céus azuis de primavera, densas florestas douradas onde o veado se deslumbra, e desertos sem fim onde é possível observar estrelas primordiais em noites cálidas. A tua alma é a soma de todos os oceanos mansos que brilham sob o sol da hora alta, e nem a aragem quente de uma noite de verão se assemelha ao teu coração.

Está na hora do universo cerrar lutas e se redimir. Esta é a altura de Deus se emocionar com as tuas entrelinhas e me aceitar por ti. Eu sou a oferenda, o preço, a recompensa. Eu.

Está na hora de, nesta vida, ainda e já, seres sol livre em madrugada alegre e despreocupada, lua adormecida em segura paz como música de embalar. Que de hoje em diante, os teus dias sejam oportunidade, recomeço, celebração, um realizar de sonhos. Livre, em paz, feliz aqui na Terra, enfim.
Deus contigo, Filho meu!

Quem Nunca?

09.09.20 | Sandra

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No silêncio da liberdade que o fim do dia oferece é mais fácil pensar-te. Sonho-te acordada, bem desperta! Quem nunca? De olhos fechados esqueço já quem sou, já não preciso de me lembrar. 

O tempo fica suspenso como uma plateia à espera de um desfecho. Estás aqui, estás em todo o lado! O que te diria eu se as minhas palavras cruzando a distância da noite chegassem a ti, na respiração das estrelas? E que palavras minhas ouvirias tu, quando a lua nova brilhasse no céu insondável como uma aguçada foice prateada sobre o negrume do teu abismo feito mar e serra?

Penso-te, sonho-te. No mistério de algo acima do real, sei que já não haveria um Tu nem um Eu. Nem um nós, sequer! Apenas esse algo feito um único momento na história do universo, trazido num feitiço há muito tecido, sentimento alheio agora só nosso. Mãos que se prendem, se agarram em deslumbre, um embalo imparável, instintos primitivos vindos do início dos tempos, um impulso ultrapassando tudo, alucinando os sentidos, fazendo os ponteiros do relógio universal retrocederem a sua marcha. Um vislumbre do que foi e do que seria.

E tudo isto poderia ser só um beijo. Poderia até ser só um abraço, apenas e nada mais que um abraço. Tão suficiente como o abraço que um dia trocamos, tão poderoso como a fusão nuclear que ocorre no interior das estrelas e transforma o hidrogénio em hélio.

No fim? O derradeiro sentido. A justificação de um sentimento até aí injustificável. A resposta final, a compreensão de tudo. Tu, entre o mar e a serra. No fim, a razão embutida no coração.

Encontro

08.09.20 | Sandra

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Chego ansiosa nas horas cheias. Vejo-te ao longe à minha espera, parado na quietude do teu jardim, cabelo despenteado pelo vento que te amansa as perguntas ainda não feitas. Caminho por aquele carreiro cravado entre velhas árvores, com inteira noção do momento presente.

Quando o auge da tarde inunda as nossas palavras olhas-me, olhar astuto, sem tempo contado. Recebes as minhas mãos nas tuas, que são como praia quente, sombras frescas, antigas promessas, sílabas estreitas.

Finjo estar serena. Um dia fui apenas gente entre gentes, e agora sou o absoluto de um abraço entre nós, feito reconhecimento. À nossa volta, as aves falam em segredo sobre o universo e estranhas naves que sem medo exploram outros mundos. Não as vemos mas sabemos que nos observam curiosas a partir das copas cerradas das árvores selvagens.

Em silêncios recatados, conduzes-me pelo braço para dentro do teu afeto que se dilui na enormidade do momento. E o momento é este, quando o meu sorriso envergonhado esbarra nas tuas certezas.

As aves calam-se, já não falam sobre naves e mundos por descobrir. A nossa alegria genuína ressoa por entre a tarde pintalgada de perdões e juras.

Quando o tempo se faz nosso cúmplice, o finalmente acontece: embrenhados na tua sala cheia do tanto que és, brindamos, celebrando a subtileza de um encontro há muito desejado. Numa tarde em que se perde facilmente a noção do início e do fim, só interessa o concreto, o sóbrio do momento presente, que ressoa no ar e nos aproxima até ao (in)esperado.

Ecos

07.09.20 | Sandra

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Mexo distraída o café à minha frente. Sinto sono, ainda é muito cedo. Silêncio à minha volta. Na rua, sons ainda baixos e discretos: os pássaros que se cumprimentam, as primeiras pessoas que, focadas no caminho, se dirigem para os seus trabalhos, cães que farejam o mundo curiosos e alegres, um ou outro carro que segue na estrada longínqua e ainda deserta.

Está já muito calor, apesar da hora jovem. Ouve-se um avião a cruzar o céu, o som grave do motor a arrastar por cima da camada espessa das nuvens cerradas que escondem todo o firmamento. Lembro-me de ti. Bem vindo, tão bem vindo, meu querido! A tua presença parece ecoar em tudo aquilo que me cerca, dentro e fora de casa. Mas sei que não é assim. Sei que essa tua presença deliciosamente refinada apenas ecoa dentro de mim e para mim; sou eu quem, dona da tua verdade, projeta esses ecos em cada recanto da parte real da minha vida.

Encontraste-me como ninguém. Conheceste-me como ninguém. Nem só de sonhos vive o Homem mas fizeste-me sonhar e conhecer novas esferas, outras belas e mais calmas possibilidades. Sem haver nunca uma questão, deste-me tudo o que de ti poderias ter dado, como só tu o poderias ter feito. Quanta honra, a minha!

Já lá vão alguns anos. Não tenho sabido de ti. Afastei-me, afastei-te. Resignada, aceito-o. Eu sei, tu sabes que eu não sou alguém resignado, conformado. Quando a ação se torna urgente e necessária, arregaço as mangas e, com uma força sem explicação, deito mãos à obra de tal forma que o mundo sacode-se, levanta-se e recomeça a sua marcha. E ai de quem! Afinal sou de Deus, e em Deus tenho a minha fé!

O café ainda está quente. Bebo-o deliciada e comovida, como naquele dia, bebi deliciada as tuas palavras frágeis e imensas feitas confissão de amor, ao sabor de um café numa tarde de vento outonal. Guardo os ecos desse teu jeito de outrora, pois dão um sentido maior a tanto de hoje!

Em Universo Peregrino

05.09.20 | Sandra

1859616_M_mix01_1600709741234.jpgPois um dia chamaste-me e eu ouvi-te, uma voz feita do murmúrio leve da brisa esquecida na noite, quando ecoa o piar da coruja no alto das árvores antigas. Ouvi o teu apelo, senti-o no arrepio da pele nua, ansiosa. Desde aí, quando me chamas, eu escuto e vou ao teu encontro.

Acolhes-me. De novo, nós. A água lisa e cheia dos reflexos prateados de luar acaricia, como cálido cetim, as nossas almas salgadas. Entre as tuas mãos (algas ao sabor da maré), assumo que parte de mim é tua pertença e oiço-te, uma e outra vez. Só tu falas, sussurros de rasgado nevoeiro que contam histórias de velhos mundos onde foste rei. São histórias que entorpecem os sentidos e devoram a alma. Nelas, não sei se ainda respiro. Apenas me torno parte do céu acima de nós, no seu movimento vivo, lento, intenso de estrelas e cânticos xamânicos perdidos na passagem dos séculos.

A noite avança por galáxias distantes, perigosas, imensas. No meu ventre, despido como horizontes esquecidos, repousas tu, veleiro na noite, enquanto ao longe, um tambor ressoa desde o princípio do mundo, e no areal a fogueira ainda arde. Sou agora mais tu e menos eu, entorpecida na infinidade das horas que não existem, e no Tempo que há-de ser. Nós permanecemos, a manhã ainda está distante e o amor é maior.

Chuva

02.09.20 | Sandra

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Verão. Muito calor. Ar estagnado, pesado. Paira um silêncio estranho na rua deserta, nos campos secos, entre os pinheiros enfezados nos montes escuros que rodeiam a aldeia.

Sentei-me no banco de azulejos coloridos enquanto me preparava para saborear um chá. Abruptamente, o céu começou a escurecer. Nuvens pesadas, cinzentas, encheram todo o firmamento, que parecia agora mais baixo, tão perto que parecia ser possível tocá-lo. Nem uma única folha abanava, como se todo o meio envolvente estivesse num impasse à espera de algo tremendo. Enquanto ia bebendo o meu chá, no meio daquele calor opressivo que me deixou em alerta, lembrei-me de ti. Porque duvidas de tanto?

Um vento agreste começou a soprar, fazendo janelas e portas baterem com estrondos secos. O céu cor de chumbo parecia agora carregado de eletricidade, num brilho peculiar, perigoso. Sem aviso, um relâmpago explodiu o céu em mil pedaços, enquanto o forte ribombar de um trovão ecoou por todo o lado ao mesmo tempo. Caiu o raio, uma faísca única, barulhenta, ligando céu e terra numa fração de segundos. As nuvens rasgaram-se enfim, aliviadas por se libertarem do seu peso. Fechei os olhos, abri os braços, e a chuva foi música em mim. Encharcada pelo aguaceiro que caiu com toda a sua intensidade, roupa colada ao corpo, descobri finalmente o que despertaras em mim: amor.