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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Compreensão

29.11.20 | Sandra

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O teu nome poderia ser Peregrino. Pelo menos foi assim que te entendi naquela noite quente e infinita.

Já tudo permanecia no silêncio adormecido: a civilização, as cidades, as suas gentes, os seus cheiros e ruídos. Vi-te de longe e logo aí senti-te vindo de todos os lugares. Caminhavas devagar mas sem hesitações, até à zona da rebentação. Aí paraste e olhaste à tua volta, deslumbrado na claridade azulada que envolvia toda a praia. Fixaste depois as estrelas, num gesto de reconhecimento, quase de saudação. E ficaste ali de pé, por muito tempo, olhando o firmamento. Sei que estavas ausente de tudo, até de ti mesmo. Pairava no ar um sentido do essencial, de certezas, como se cada momento, cada espaço, encerrasse em si o seu próprio começo e o fim, e tudo fosse a sua própria razão de ser.

Parecias murmurar uma oração. Ou talvez simplesmente falasses com as estrelas imensas, tremendas no seu brilho e poder. Começaste a cantar. Não me foi possível distinguir palavras, mas parecia uma espécie de cântico como o que certas tribos costumam entoar em antigos rituais importantes, para agradecer ou pedir algo aos seus deuses. Às vezes calavas-te e parecias escutar os fortes ecos do imenso universo que se arrasta pesado e denso para lá da noite, ecos secos, graves, longínquos e ininterruptos. Havia um misto de admiração e respeito na tua expressão, na tua postura, enquanto te espantavas com a imensidão de tudo. Talvez cantasses sobre histórias de tempos muito distantes, com sabor a mistérios, risos, canções e amores.

E finalmente tudo ganhou sentido. Compreendi enfim cada passo que me levou até ali, cada queda, cada cansaço, cada fraqueza, cada retrocesso que fez de mim quem eu era nessa noite. Porque eu tinha que te encontrar, tinha que, ao ver-te nessa noite, perceber que há um lado insondável que está para lá da compreensão humana e que comanda a ordem real das coisas, num Tempo e num Espaço sem limites, infinito elevado ao máximo. Algo para lá do nosso lado humano e percetível.

Ali, numa noite quente, plena do brilho das estrelas, ensinaste-me sem o saberes, que as coisas são como têm que ser, mas que há sempre algo para lá do desespero e do que conhecemos. Compreendi tudo finalmente, e chamei-lhe fé em Deus.

Flor de Inverno

26.11.20 | Sandra

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Estremece a flor sob o peso da madrugada que, como amante, se deita no seu corpo nu e frágil.

São gélidas as carícias que a geada deixa nas suas cores desbotadas, e há muito que o seu perfume se misturou com névoas arrepiadas que vêm de longe e tudo alcançam.

A cada branco amanhecer do longo e impiedoso inverno, fecha-se a flor ainda mais sobre si mesma e, à pressa, recolhe sob as suas pétalas os últimos desejos, as derradeiras forças que resistem vergadas à hora fria e ao vento inquebrável.

Mas invariavelmente o inverno passará. É nessa certeza que a flor tudo suporta, apenas e só apenas para continuar a ser aquilo que nasceu para ser:

Flor, sempre flor!

Chuva Caída

25.11.20 | Sandra

4571211_S.jpgManhã de chuva mansa, ininterrupta. Tudo parece abarcar, puxar a si num único abraço ávido, enquanto cai vertical, humilde, frágil e sentida. A paisagem à minha volta parece submissa, rendida já sem força a essa chuva que veio silenciosa de tantos e secretos lugares. A praceta, os relvados bem cuidados, os parques, estradas e  caminhos, prédios e carros, tudo se despe à chuva mole e insistente que tomba de um céu pleno, nostálgico.

Deixo-me levar pela visão das gotas de água que, vagarosas e amantes, se deitam no cenário frio que me cerca. A sua musicalidade mistura-se aos sons das aves, que arrepiadas ignoram a chuva e prosseguem os seus afazeres. Choveu toda a noite, mas é bem diferente esta chuva de agora, que se assemelha a uma melopeia de velhos tempos, a um narrar de histórias antigas ou a um lamento por causa de um triste amor. Sinto frio, trago pouca roupa no corpo, mas não consigo afastar-me da janela de onde vem aquele perfume tão típico a terra molhada, a relva fresca, à madeira molhada das árvores, que torna leve, renovado, o ar. Hoje, numa manhã em que acordei cansada, de tudo e de nada, a chuva relaxou-me, lavou não só a paisagem ao meu redor mas também os meus sentidos, o meu cansaço. A minha fé intensifica-se.

Estação Cor de Fogo

24.11.20 | Sandra

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Derrama o outono pelas ruas a sua luz perene, feita de cobres alaranjados.
Nas cálidas horas de douradas tardes, descem ao chão as folhas de ouro, secas e barulhentas, filhas de um tempo maior. Deita-se nelas a brisa morna, preguiçosa, melosa, cheia de doces insinuações, saída do encurtar dos dias.

Na dormência da meia-estação passam pelos passeios passos teus. Ouço-os quebrando esperas minhas. Ansiosa, admito que esta estação cor de fogo parece toda ela saída dos teus beijos, que quero quentes em mim, em intermináveis tardes e imensas noites. E entrego-me por inteiro ao outono que és tu...

Natural

22.11.20 | Sandra

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Quebram-se em raios de luz todas as sombras. Lâminas afiadas feitas de sol descem ao solo onde a tua alma ainda descansa, embrulhada em mantos de folhas soltas. Tens o cheiro da terra fecunda, fresca, húmida e macia. Repousas a cabeça nos dentes-de-leão e trevos que brotam jubilosos do chão. Gotas de orvalho evaporam-se devagar junto às tuas mãos feitas de sonhos. A luz que fura espaços entre a densa folhagem invade-te memórias, desperta-te aos poucos, e lá longe, silhuetas difusas de gamos silenciosos passeiam-se leves na bruma que amo. O Tempo para e a tua voz ouve-se em cascatas de águas que correm desde o primeiro dia na Terra. A floresta ganha vida e as aves calam-se para te ouvir. Na luz que desce sempre, fina e esbranquiçada, dás-te ao mundo, finalmente. Ramos estalam à tua passagem e entras nesse lugar insondável de névoas tuas, onde te perdes e reencontras! És de todos, és a natureza e o amor, gerador da vida e do descanso, és o ontem, o hoje e o amanhã.

Palavras de Mundos

21.11.20 | Sandra

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Há palavras poderosas. Chegam devagar, tímidas, discretas. Cautelosas. Resguardam-se no espaço vazio do papel e aos poucos despem-se, deixam sílabas à solta, letras em festa, ideias que se espalham pelo ar em delicados círculos. Há palavras feitas de todos os mundos possíveis: esse espaço lá fora, cheio das imensas cidades, aviões que cortam a fio de espada os céus, estradas rápidas que rasgam ao meio montanhas, aldeias históricas que enfeitiçam a alma. As gentes, multidões, barulhos e cheiros. As histórias, as culturas, os enredos, as leis e lendas, o imprevisto, os amores.

Depois, aquele outro mundo: planícies tremendas a perder de vista, cerradas florestas cheias de segredos, caminhos escondidos onde lutam pela sobrevivência espécies raras, pouco conhecidas; grutas profundas onde ninguém vai e se escondem rituais de antigas tribos. Desertos poderosos, que matam de dia e amam de noite. Glaciares gigantes e cataratas que parecem mergulhar com estrondo nos confins da Terra, a partir do mais alto céu. E os campos, os lagos, as cadeias montanhosas, os oceanos. 

Há ainda aquele outro mundo, o que nos rodeia, que nos deixou ser parte integrante do tanto que ainda é mistério: o firmamento escuro da noite e o mistério para lá do alcançável. Milhares de galáxias, estrelas, planetas. Sistemas em formação, órbitas, radiação, o vácuo, explosões a anos-luz, a vida e a morte, que é apenas transformação afinal.

Depois... às vezes a palavra chega de mansinho, muito caladinha, abeira-se de nós, sedutora, para murmurar ao nosso ouvido um outro mundo. Este é tão especial, frágil, delicado, belo, secreto: é aquele mundo interior de cada um, que começa no coração, atravessa a mente e termina na alma. Abrangente, misterioso, complexo e, simultaneamente, simples. São os sentimentos, as histórias de cada um, o crescimento pessoal. As aprendizagens, as falhas, as quedas; as conquistas, as grandes vitórias. As verdades, os receios, as fragilidades e as forças. Os avanços e os recuos. O poder, o acreditar, a fé. Os amores, seja que amor for, pois o amor tem várias formas. Os desencantos e os sonhos.

E sempre, sempre a palavra, um minúsculo átomo que explode num todo, encerrando em si todos e cada um desses mundos. Palavras que beijam, picam, abraçam, arrepiam. Palavras podem abrir mil universos e fazer brilhar mil constelações; tal como podem derrubar-nos por precipícios e escuridões. Quantas realidades existem numa só palavra! São sílabas unidas tão poderosas que se manifestam até num gesto, num riso, numa expressão, num silêncio que tudo diz. No final é isso que fica: as palavras. As que nos tocaram e as que deixamos por dizer - e que são tantas afinal.

 

 

A Idade do Espanto

20.11.20 | Sandra

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São coloridos os acordares nestas manhãs feitas de sorrisos, que rindo, caem do sol.

Na extensão dos secos prados ondulam já as ervas do campo.
Em praias distantes, de vastos areais e eruditas rochas, gaivotas compõem murmúrios que o mar há-de gritar em longas marés.

E o Mundo aos poucos desperta, espreguiça-se devagar, sacode a vastidão dos desertos, as mais altas montanhas, os grandes rios do mundo, as florestas mais densas, as esquecidas enseadas onde Deuses passeiam, altivos.

O Tempo renova-se. Sem pressa recria histórias, reinventa trajetos, faz pulsar a humanidade!
É este o momento, a idade do espanto, em que me entrego sem incógnitas a coloridas manhãs que são todo o macio calor da nudez dos meus sentidos.

Enfim

19.11.20 | Sandra

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Estou mais perto de ti. Finalmente, contrariando expetativas e probabilidades, perto outra vez. Também tu estás mais perto de mim. Ousaste cumprir esse teu impulso e agora temos todas as possibilidades abertas a nós. Sei tanto de ti e tudo se conjuga para aquele afeto sempre constante, sempre presente. Esse teu mar, cúmplice de tanto da tua vida e do todo que és, já molda ideias, alisa a areia fria da praia que nos aguarda, pede ao vento que seja gentil e penteia a erva agreste que canta no frio. Conheço-te tão bem! No conforto da tua casa, entre histórias, olhar perdido no céu pesado e cru lá fora, já planeaste conjugações, hipóteses, decorrer de passos dados. Sei que face ao que de novo se apresenta, já o teu lado prático de homem maduro preparou a minha visita, tudo a postos. Sei que o outro teu lado, o mais puro, frágil e belo, se alegra surpreso, coração cauteloso mas tão feliz, que pulsa com essa mesma força que a Serra de Sintra de si emana. E no aconchego do teu lar, cairão palavras minhas, que vaguearam anos, loucas como gaivotas ao sabor dos ventos e das marés. No encanto da tua propriedade e da tua praia, onde te retraíste e te expandiste, poisarão enfim, como confissões e confirmações, as palavras de uma alma que se despe e renova. Anseio. Anseio-te, que tanto de humano tens. Anseio essa tua praia, recanto teu, que nos espera. Anseio a tua sala cálida e plena dos encantos do mundo por ti percorrido. E de novo, num tremendo impasse, anseio-te, humilde e pleno homem. Como já se passou este tempo todo...

Alma Crua

18.11.20 | Sandra

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Assim és. Forte. Intenso. Audaz. Livre e libertador. Arrebatador. Pairas no silêncio da tarde com a maciez do tempo que chega, como uma criatura selvagem no meio do bosque. À tua passagem tudo se torna certeza, deslumbre, resolução. E o vento espera, na pausa da hora parada. Nos dourados e castanhos da estação, folhas que caem trazem nelas os poemas do pólen que sobe e se despe no ar tépido, prenhe de ti. É o silêncio que, solene, te cobre esse solitário corpo que sempre me amarra os sentidos num abafado desejo. Fico estática no impasse de qualquer gesto que possas fazer. É sempre assim. Sei que bastará um leve movimento teu e já eu estarei perdida em mim, rendida em ti, na mansidão dos tons quentes que nos toldam palavras de âmbar, poder que emana de ti, que devoro ávida, alma crua.

Nevoeiro

17.11.20 | Sandra

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Tem sido assim nestes dias, desde a madrugada, jovem e inocente, até à noite vasta e misteriosa: um nevoeiro cerrado, húmido, branco e brilhante, que disfarça os contornos das estradas, prédios, árvores, candeeiros de rua e humores. Às vezes, parece que passam sombras nas sombras, perto de mim, figuras altas, esguias, que desaparecem tão misteriosamente como chegam. Os sons ouvem-se abafados, distantes, como vozes fantasmagóricas vindas de outros mundos paralelos a este. Sinto-te perto, presente em meu redor, em cada recanto esbatido e silencioso, opaco na luz difusa. Também tu és esse oculto que se adensa em mim e torna tudo opaco, belo, misterioso aos meus sentidos. E gosto tanto de ti, mais ainda, nesse nevoeiro que me atrai, um gostar leve, definido, certo, objetivo. Como gosto de ti... E nessas névoas desejo-te, a tua presença, a tua constância, tudo o que és e me fazes sentir! Sentimento esse que permanecerá, mesmo quando as névoas se dissiparem sob a dureza do sol impiedoso.

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