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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Grandiosidade

08.12.20 | Sandra

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Abre-se a tarde em luz. Um sol tímido espreita finalmente, entre nuvens que ainda marcam presença num céu frio e impiedoso. Do lugar alto onde estás, ficas completamente absorto nessa paisagem sem fronteiras. Misturas-te com os montes e a vegetação, as pedras e os horizontes, as cores e a grandiosidade que te cerca, e que faz de ti tanto de quem és. Tens em ti tanto da natureza que faz parte dos teus dias: o mar, as dunas, a serra, o monte, os arvoredos e as sombras, a lua e o sol aberto no horizonte distante. Tudo se mistura a esse teu inconfundível jeito de ser e que me fascina tanto. O teu espírito é imenso, acolhedor de mundos, outras vidas, histórias, limites atravessados em extremo, provas superadas. E em tudo, ressalta esse teu lado tão humano, essa tua transparência, que tudo abarca, tudo envolve, e a tudo se dá em sinceridade plena, de coração aberto ao mundo.

Ali vejo-te tornado pequenino pela vastidão que o teu olhar abarca, tu, uma simples criatura, que faz parte de algo muito maior, mais poderoso, que nenhum ser humano seria alguma vez capaz de recriar, e que desperta sentimentos que as palavras ainda não conseguem exprimir no seu todo.

Como te defines tu, face a toda essa imensidão que se estende à tua frente? Creio teres a mesma grandiosidade, a mesma plenitude, os mesmos vastos horizontes. Creio seres capaz de sentir e transmitir a mesma sensação de liberdade, de leveza, de espanto e deslumbre.

Não perdemos o momento, afinal não é todos os dias que podemos dizer: "Agora compreendo!". Ficamos ambos em silêncio cúmplice, eu e tu, rendidos ao entendimento de algo imensurável, que escapa à nossa limitada condição humana, que nos mostra o que realmente importa...

Há momentos que nos colocam no nosso devido lugar, que ensinam quem somos nós, afinal. Que nos provam o quanto de belo e único deixamos escapar por entre os dedos, o quanto estamos constantemente a perder por olhar na direção errada. Momentos que enaltecem os encantos que este Mundo tem, apesar dos desafios inerentes à espécie humana. Há momentos que nos aproximam mais à nossa própria origem, à nossa essência natural, quando é fácil deixar escapar o menos bom dos nossos dias e sermos nós próprios, sem ter que provar nada a ninguém. Momentos assim tornam-se inconfundíveis, inesquecíveis. É quando mais apetece o amor, o teu amor. Não é isso que a tudo enriquece, que a tudo complementa? Ama-me então!

Relaxar

07.12.20 | Sandra

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Olho a noite. Deixo-me ficar uns momentos dentro do carro antes de ir para casa. O dia esteve quente e o ar noturno está muito agradável. Algumas árvores e arbustos abanam ao sabor do vento fraco. Olho o céu, as estrelas. Uma, mais brilhante, parece-me ser Vénus (supostamente visível a olho nu, nestes dias), mas não tenho a certeza. Nestes tempos pareço não ter muitas certezas e considero cada vez mais difícil agir como gostaria ou deveria. Atribuo isso às preocupações, ao cansaço físico e psicológico. Amanhã tentarei ser melhor, fazer melhor. Amanhã...

Para já, prefiro saborear este momento. Lembro-me das longas noites de verões antigos, após um dia carregado de sol, calor, o cheiro a areia, sal e mar. Recordo-me das férias de outros tempos, as viagens, as festas e o amor, que ia e vinha sem importância. A escuridão relaxa-me e sinto que, ao ficar aquele instante no carro consigo cortar mais facilmente com o cansaço das horas que passaram.

Amanhã, outro dia. Diferentes oportunidades. Quem sabe, mais coragem e renovadas forças. Renascida fé e o retomar as minhas conversas com Deus. Por hoje, chega. Acima do mundo, a noite parece pequena e, ao mesmo tempo, colossal. E, dentro de mim, o sono, a oração, a lembrança de algum pormenor do dia que já lá vai, e o desejo de alguma grande bênção, não tanto para mim, mas para a minha família. Tão grande como a noite, o mundo e o céu por cima de mim. Tão grande como o que sinto por ti e que é belo, poderoso e frágil. 

Deitada Sobre Ti

05.12.20 | Sandra

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Aos vastos campos a perder de vista, quando neles a erva ondula no dourado da tarde e, no céu alto, enquanto árvores dormem na preguiça da tarde, aves peregrinas voam.

Erva do campo, flor selvagem, vontade dispersa numa vastidão imensa aberta ao céu. Horas que fustigam as sombras das nuvens preguiçosas, que percorrem as aves e os insetos despreocupados. Não passa o tempo para o quente seco da terra antiga, onde o agreste se entrega ao horizonte desinibido que tudo nele abarca.

Despem-se a erva dura e a flor rija, ao sol que não se acanha e acaricia lentamente; ou à chuva que escorre interminável, que molha sem pudores até à raiz arrepiada na pele do solo profundo. Resistem ao vento que ama com força, às geadas que beliscam como beijos, ou às brumas que provocam até ao limite quase insuportável.

E quando a noite mordisca segredos no escuro onde estrelas são como intemporais velas acesas, e as sombras, um jogo, cedem enfim, a erva do campo e a flor selvagem, ao serem parte da natureza, sob toda a imensidão do universo onde as aves se calam e os deuses falam.

A manhã chega invariavelmente, e sempre encontra a liberdade expressa na tremenda força dos campos, planícies, pradarias sem fim. E é por isso que gosto de me deitar sobre ti, erva do campo, sabendo ao meu redor as flores abertas ao céu, aos insetos, às aves. Porque tu, campo, compreendes-me, porque sou eu também campo.

Manhã na Praia

04.12.20 | Sandra

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É cedo ainda. Passeio pela praia. A maré cheia da noite passada deixou o areal molhado até ao paredão. Por todo o lado, pegadas de gaivotas e ramos partidos. Mais à frente, dois cães perseguem aos saltos um pombo solitário, que parece divertir-se com a situação, provocando-os e fugindo às suas investidas. Mais um cão junta-se à perseguição e o pombo afasta-se de vez para longe. Está muito mais frio que o habitual. Grossas e imensas nuvens cobrem o céu com um tom cinzento-escuro, ameaçando temporal. A praia tem um ar gelado, desolado, nostálgico.

O vento sopra agora muito forte. Ao lado das rochas um grupo de adolescentes solta os seus papagaios ao alto, afastados entre si, para os barbantes não se prenderem uns nos outros. Conversam num tom de voz muito elevado, não só por causa do barulho do vento mas também por causa do imenso rugido do mar, que abafa todos os outros sons à sua volta. Ondas começam a formar-se ainda longe e não param de ganhar altura até à zona de rebentação. Aí, desfazem-se com um enorme estrondo, umas após outras, deixando a pairar no ar como que uma chuva lenta, e na areia uma espuma grossa, branca. Na zona do pontão pescadores arrumam à pressa canas, baldes e variados apetrechos, lutando contra o vento impiedoso. Bandos imensos de gaivotas brancas e cinzentas refugiam-se na segurança da areia atrás das pedras, longe da água.

Começa a chover com força, grossas gotas de água, geladas, vindas de todas as direções ao mesmo tempo. O único café aberto aquela hora serve-me de abrigo. Está muito calor no seu interior. Olho à minha volta. Imagino como seria descobrir-te ali, por acaso, entre aquelas gentes, num golpe de sorte que tornaria o nosso primeiro encontro mais fácil. Reconhecer-te-ia?

Mas tu não estás e tudo parece subitamente mais vazio, mais sem sentido, apenas porque desejei algo que não aconteceu. A chuva parou. Saio para a esplanada coberta por um enorme toldo desbotado, para melhor apreciar o mar revolto e o céu agreste, os cães em correrias loucas à volta de nada, e as pessoas que já se espalham de novo pela areia dura e gelada. Sinto tanto a tua falta, era ali, naquele momento, naquele lugar, que gostaria de te encontrar, enfim.

Madrugada

01.12.20 | Sandra

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Há dias assim, em que a madrugada queda-se num silêncio sem forma, e a infinidade de tudo parece nada abarcar.

São horas paradas, leves e mal definidas, as da madrugada. Sonhos dos que ainda no seu leito descansam, misturam-se às neblinas frias e silenciosas que sobem do mar e envolvem tudo à sua passagem.

Na praia, ondas desfazem o areal, embatem nos rochedos, alheias às gaivotas que já despertas acompanham traineiras. Nos vastos campos, ervas orvalhadas, geladas, conversam na luz pálida e frágil que já se adivinha no horizonte. Os jardins tremem ainda da friagem da noite e, nas fontes, só algumas folhas mortas balançam melancólicas nas gélidas águas. As aves começam já os seus movimentos nas horas jovens, ainda acanhadas, como se apanhadas de surpresa pela partida da noite. Becos escuros e ruelas vazias, com os seus vasos adormecidos nas varandas esquivas, aguardam já os raios de sol que lhes hão de dar vida novamente. Por ora, em tudo paira essa ausência de movimento, cor, forma, como se a madrugada tivesse capturado tudo para entregar, como uma espécie de oferenda ou holocausto, ao dia que sabe estar para chegar.

E o dia chega finalmente, sóbrio sobre as pedras nuas da calçada. Recebe das mãos da madrugada sonhos, esperanças, pedidos e orações, devaneios e amores. E envolve tudo com o sol que cai ofuscante e quente em cada canto e recanto, em cada telhado frio, em cada muro coberto de hera, em cada esquina tímida. Musgos brilham aos primeiros raios de luz, as folhas das árvores sacodem de si a preguiça das horas esbatidas, os caminhos cumprimentam os primeiros movimentos do dia.

A vida recomeça: misturam-se o sol, o calor, as ruas e as suas gentes, os ruídos, os cheiros, a azáfama das horas que não esperam. Já a madrugada está longe, já dorme, serena, esquecida de tudo, aninhada nos braços quentes da noite que a aguardava ansiosa. Haverá de voltar, a madrugada, afinal é esse o infinito ciclo do Tempo que acompanha, orienta, a nossa condição humana.

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