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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Tardes Tuas

31.01.21 | Sandra

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Sei que a tarde te traz de volta a ti mesmo. Há muito tempo que é assim, não é? As tardes pertencem-te, mesmo quando se elevam enormes, tremendamente demoradas, arrastando-se mudas à tua frente!

É nessa altura do dia que consegues respirar fundo as sedentas ideias que voam da tua alma como aves soltas ao vento, e que caminhas sobre singulares reflexões enquanto os teus pés te conduzem, em desespero, ao lago gelado perto da tua casa, de onde se avista lá ao fundo um mar escuro e brilhante. Chumbo ao sol...

Às vezes ficas aí muito tempo, à beira desse lago de águas cerradas, imóveis, que esquecidas das loucuras do mundo apenas te olham e escutam. Escondes as mãos nos bolsos quentes onde questões sem resposta se escondem há tanto tempo, e saboreias a paisagem fria e adormecida nos minutos que te acompanham, cúmplices do teu próprio tempo.

Outras vezes, agarrando o apelo de um impulso mais forte, caminhas sem saber que força te move, entre duros pinheiros e luz, até à praia. É quando te abandonas ao mistério, focado em novos sentimentos que te surpreendem, rendendo confissões a esse mar que tão bem te conhece, e a esse céu que sempre acolheu tantos dos teus sonhos, os que ficaram pelo caminho e os que nascem ainda, apesar de tudo.

O tempo bem te tinha avisado que há sentimentos que nos agarram, não para nos manter como seus, mas para nos moldar - e libertar de novo!

E tu libertas-te sempre aí, acolhido na imensidão de um mar solene e de um céu feito de tanto de ti, onde o silêncio se senta ao teu lado junto com velhas memórias e novos quereres. Libertas-te e deixas partir as tuas incertezas, receios, os teus "E se?". O mar tem esse efeito...

Sei que no momento certo, exatamente quando os céus se despem do dia e o mar se veste da noite, tu regressas à tua casa, alma limpa, corpo arrefecido pela friagem do crepúsculo e cansado pela caminhada feita, já pronto a entregares-te aos prazeres de um bom jantar e uma boa lareira. Para de novo acreditares em ti e nas tuas possibilidades inesperadas.

Luz

26.01.21 | Sandra

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És luz que facilmente atravessa tempos e memórias, para iluminar as certezas ambíguas destes dias singulares. Com uma claridade ímpar, clareias espaços onde o deslumbre ainda marca os sentidos indefinidos. Consegues transformar os dias em cetim branco, brilhante, macio, como um ameno lugar na mente onde estão todos os sonhos de todos os tempos e lugares. Pressinto-te suave e doce em incessantes buscas das horas que virão, e o caminho é todo ele uma gota luminosa onde os meus passos flutuam, soltos. E brilhas, brilhas mais, pronto a iluminar almas que te vislumbrem e entendam. É na tua luz que me envolvo, serena em contemplação, respiração pausada, tranquila, na certeza da fé inabalável que me preenche. Completas-me, e agora repousas, luz espalhada por aqui e por ali, descansada na placidez das palavras de quem sobre ti escreve. Eu observo-te nesse descanso, és tanto de mim, como eu de ti.

Desperta

23.01.21 | Sandra

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Acorda-me a chuva vagarosa, lenta, a cantar poesias sobre os campos que se estendem vagos, para lá da praceta bem cuidada. Ervas e flores acomodam as suas raízes e compõem as suas folhas, para receberem as notas musicais cristalinas que a chuva delicada traz. Calam-se ao vento que pousa memórias pelos carreiros de terra batida e, delicadas e humildes, escutam as gotas finas e frágeis que se deitam risonhas, um pouco por toda a paisagem. Nas árvores nuas da praceta, alguns melros e rolas gemem e palram, palavras feitas de despertares. Também eu estou desperta agora. Olho a rua enquanto bebo um café e sei que para ti nada sou. Aí, não muito longe, estás tu. E  longe, estás tão perto de mim que não há como afastar-te para longe de novo. Serás sempre só tu. E agora a chuva cai, linda, brilhante. Diamantes que enfeitam o dia, a praceta, os campos de ervas e flores. O vento sopra mais intenso. Volto tranquila para o aconchego mudo, certo e fiável dos lençóis quentes. A manhã lá fora desenrola-se e a fé renova-se.

Pintar com Palavras

21.01.21 | Sandra

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Numa tela em branco, pinto-te.

Pinto-te de poesia,

Como quando se pinta um pôr-do-sol

Que faz amor com o fim do dia.

Pinto-te com a frescura de um amor de saudade salpicado,

Azulado,

Como o céu enlouquecido,

Num mar aceso refletido.

Pinto-te com as carícias demoradas,

Exultantes, exuberantes,

De um vento fugaz na erva do campo!

E entretanto...

Pinto-te também assim:

Verde, flor sem sede,

Como um poema que se balança num trapézio sem rede,

Para cair todo dentro de mim!

E pinto-me então também,

Com as cores de um mundo louco e rouco,

Que é de todos e de ninguém.

Tanto faz, a vida é mais!

E a cor fica sempre,

Quando se pinta com palavras feitas de alma de gente.

Das Brumas, à Chuva

20.01.21 | Sandra

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Estás sempre em dias como o de hoje, quando a chuva cai destemida e incessante ao passar das estrofes num papel rasurado. Nestes dias, veste-me a nostalgia com o cinzento macio do firmamento, e o vento acalma-se enquanto pousa as mãos nos meus ombros promíscuos, num gesto familiar e comum. Um dia lá atrás em que a chuva caía assim, contaste-me que no lugar de onde vieste, as brumas, das quais eras o senhor, estavam cerradas em mistérios, e no etéreo do limbo caminhavas como haragano impulsivo, entre o oculto de mundos paralelos. E chamaste-me de Alma Pura. Amei-te então, desde então, até hoje, como balança pura.

E hoje chove, a chuva torcida num rodopio brilhante de um céu ainda mais brilhante e quente, cheio de rimas e prazeres mudos. Escuto no som das gotas que embatem no mundo a melopeia que me fala de ti. Mostra-me sílabas de sonetos marginais, escritos em curvas mal iluminadas e cheias do que és. O teu nome e a chuva enrolam-se como dois amantes, e eu sinto na pele o ardor da tua falta. Hoje a chuva segredou-me ao ouvido que é preciso não segurar palavras nem ocultar gestos, pois as estações sucedem-se sem piedade e é imperativo aproveitar o embalo vertiginoso do tempo. Calo o impulso nas emoções que se atiram ao silêncio, abro a janela e entrego-me à chuva morna, cheia de títulos e desenhos sensuais. Cada um de nós sabe de cor o seu papel. O meu, neste dia de chuva, é dizer que gosto de ti. 

Vida de Pombo

18.01.21 | Sandra

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Olhas o jardim que é teu, onde as flores sabem o teu nome e os ramos altos das árvores de fruto te acolhem dia após dia.
Gentes passeiam-se por caminhos onde se cruzam com outros como tu, alheios às marés distantes e esquivos à pressa das estações. Cães risonhos farejam o relvado bem cuidado, patos insolentes dormitam ao sol e pardais tecem comentários à política nacional. Passam por ti miúdos de triciclo, donos do mundo, e, nas pedras lisas da lagoa, tartarugas torram ao sol.

Contas os minutos e decides ser ainda cedo, afinal o verão ainda vai a meio. Com um indiferente encolher de ombros, acalmas as tuas ansiedades. É fácil ser-se pombo: o mundo pode ser grande visto do alto, onde nuvens se balançam no vento siroco que parte, e todos podem ser águias ou falcões. 

Na lentidão das horas de calor deixas-te ficar por sombras ou recantos, sonolento, olhos brilhantes, as tuas cores a cintilarem ao sol, a arrulhar longos poemas dos tempos modernos.

Abre-se então a tarde ao mundo, imensa, ampla, em toda a sua plena luz. Nela, és tu o pombo mais belo de todos os jardins da cidade, voando alto em toda a tua exuberância. Tão alto como os sonhos que sonhas quando mais tarde o jardim se entrega à luxúria da noite, e as estrelas refletem-se prateadas e cortantes na água escura da lagoa coberta de nenúfares.

Senta-te

17.01.21 | Sandra

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Vem sentar-te comigo ao sol. Vamos deixar o calor evaporar dos nossos corpos as horas passadas e as ideias esquecidas nalguma curva apertada. Senta-te comigo e soltemos as perguntas sobre a areia quente onde o sal experimentou o horizonte distante, que ainda hoje fala de desconhecidos mares e destemidos corsários de outros tempos.

O mar despe-se à nossa frente, pleno das lendas que sereias cantaram quando a fase da lua mudou. Falemos então, nós! Entre os silêncios da brisa ausente, contemos tu e eu quantas ondas tem a maré cheia, e quantos raios de sol deslizam pela nossa pele entregue ao calor. Falemos de ruas estrangeiras batidas pelos dias solarengos, dos perfumes das flores que pendem das varandas, e dos vasos que ladeiam portas onde todos os sorrisos moram e gatos mandam.

Conta-me dessas praias sempre quentes onde o mar se embala num vai e vem que hipnotiza os sentidos; e eu contar-te-ei sobre aqueles jardins cheios de perfumes e sombras, onde patos e peixes valsam por entre os coloridos nenúfares do lago. Falemos de gentes e músicas, lendas e factos, lugares que repousam por aí, e deste mar vestido de cetim prateado que nos cai aos pés, enquanto gaivotas riem em voos rentes às rochas cheias de vida.

E fica então comigo, mais um pouco! Por ora, temos tempo e o sol brilha.

Busca Pelo Nome

15.01.21 | Sandra

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Tens pairado por aqui e por ali, alheia aos perfumes das gentes, aos cães que correm rua abaixo, aos comboios que sonham em cima do silêncio dos carris. Conversaste com todas as flores do campo e dormitaste no jardim bem cuidado. Viste a manhã chegar sobre os casebres dos caseiros e sentiste o aroma do musgo que cobria a água negra dos antigos tanques de lavar roupa. Certa manhã morna, viste o teu reflexo numa poça de água que ficou depois da chuva caída durante a noite e quiseste saber o teu nome. Borboletas, há muitas...!

Tinha que haver muito mais para além do voar ao capricho do vento quente e seco. Tinha que haver mais do que o uivo dos cães e o toque do sino dormente da igreja da aldeia. E tinhas que ser mais do que só borboleta.

A tua força fez-se imensa! Olhaste as tuas pequenas asas, primeiro uma, e depois a outra, e embora certa das suas fragilidades, voaste, voaste sempre, cada mais alto: porque apesar de te saberes frágil, acreditaste! O sol poderia queimar as tuas asas cheias de histórias de madrugadas e de entardeceres, mas para lá do teu mundo conhecido, estaria certamente algo digno de ser descoberto. Talvez escrito numa folha de papel dançando ao vento estivesse enfim o teu nome. Talvez fosse mesmo Borboleta. Ou Amor.

Esperança

14.01.21 | Sandra

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A manhã sentou-se a meu lado. Encheu-me de vagares e fez-me todas as promessas do mundo. Falou-me de fé, enquanto a dourada claridade me acolhia doce, no seu colo. No calor do dia que se revelava e despertava em brilhos o campo ao meu redor, certezas tornavam-se inabaláveis. E a manhã falou-me de ti.

Escutei-a nessa luz dourada que me abraçava em sorrisos. Disse-me que te conhecia desde as primeiras letras desenhadas pelo Homem na terra agreste e dura de outrora, quando cometas rasavam a atmosfera fresca da Terra e ventos gélidos congelavam montanhas. Contou-me que também se cruzou contigo em imensas noites em que fogueiras eram acesas na praia e rituais de amor eram cumpridos.

E mais baixinho, a manhã falou-me sobre o poeta que és, amante de sonetos e paixões que rimam, silêncios em entrelinhas cruzadas e de outras manhãs douradas como esta, de sentidos espaçados à distância de um avançar de ponteiros do relógio. Reconheci-te logo. Já tinha estado também contigo: quando o sol irrompia majestoso entre os altos pinheiros, quando os montes dormiam castanhos ao embalo de uma tarde de calor sufocante, quando eu refrescava os pés na rebentação fresca de um mar coberto de reflexos prateados do sol do meio-dia. E desta vez, a manhã não falou. Calou-se para me escutar. E eu disse-lhe o teu nome: Esperança. A manhã acenou e permaneceu em silêncio a meu lado, enquanto os insetos voavam à luz que se expandia no avançar da manhã.

Altivo

12.01.21 | Sandra

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E ali estavas tu, olhando-me de frente, fim de tarde, altivo, resplandecente, presente. Vislumbrei-te ao longe, e aproximei-me para te ver melhor. Sondei-te nas silhuetas escuras do dia que estava prestes a adormecer, e recebi-te no contraste dos ecos de palavras adormecidas também. E fiquei.

Demorei-me no teu mistério, semblante de cores flutuantes que desciam em camadas lascivas no crepúsculo pendente. Um enquadramento perfeito de memórias vindas do tempo em que os homens planeavam caçadas e contavam estrelas. E fui eu quem perdeu a noção do tempo que passava. Conheci-te o silêncio, enfim, pleno, cheio de matéria e sentido. Nesse teu silêncio, ouvi-te. Soube, sem o dizeres, que vinhas de longe, de outras noites, outros dias, outros lugares. Talvez me tenhas encontrado por lá, pois enquanto te acolho a intensidade, o mistério e a beleza, sei que te vi mil vezes noutros passados, sempre com o mesmo deslumbre e as mesmas interrogações.

Hoje vais, mas amanhã, em todos os outros amanhãs, voltarás humilde e altivo. Essa é a roda da vida, o cíclico, o eterno e imutável. E em cada "amanhã" continuarás a surpreender-me, a apanhar-me no teu segredo insondável e a espantar-me com a tua beleza final. E eu fico, ficarei sempre.

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