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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Não Existe

29.04.21 | Sandra

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Foi na encruzilhada de palavras

Que encontramos o inesperado:

O longe, tornou-se perto,

O não, tornou-se sim,

E o impossível foi possibilidade!

No início, palavras corriam soltas,

Significados planando ao vento,

Saltitando entre frases leves que se ficavam

Quando só o silêncio chegava.

Mas a poesia faz-se,

Torna-se ideias e sentidos,

Capta olhares, interpretações

E despe-se aos corações, poetas eles também.

Poesia e prosa,

Céu e mar em crepúsculo,

Que se amam no anoitecer,

Na entrega do lápis ao papel!

Entregar-me-ia eu a ti,

Se nas palavras só o amor me basta,

Se só o simples me agrada?

Se me amas, ama-me escrita eu,

Escrita em palavras tuas:

Na escrita, o impossível não existe... 

Regresso a Casa

25.04.21 | Sandra

1406846_M.jpgParto na manhã ainda pequena, quando o ar arrepia-se de frio e o orvalho mal começa a derreter-se nas ervas adormecidas. Na hora jovem os telhados húmidos ainda estão despidos de pássaros, e nas estradas vazias só os primeiros raios de sol tocam o gélido alcatrão, pintando-o de reflexos cor de fogo. Conduzo em direção ao nascente, um mar azul, frio, de águas paradas, a acompanhar-me na viagem. O vento desperta com o dia que nasce. Vejo-o ondular as ervas secas das dunas imóveis, e roçar as árvores que, como sentinelas, olham firmes a marginal. O vento não tem som, são as árvores que cantam quando o vento passa por elas e acaricia-lhes as folhas, as primeiras da estação. Pelos campos, já vastas extensões floridas pintam a paisagem de amarelo e lilás, flores ainda tímidas no raiar do dia, na primavera que se mostra aos poucos. Tu não estás aqui. Gostarias deste lugar? Escreverias tu sobre o mar e as dunas, as árvores e o campo, as estradas e a manhã, as flores roxas dos campos?

Continuo a conduzir, com o sol a elevar-se cada vez mais, a despertar a paisagem que me acompanha sempre, fundida com recordações tuas, num misto de saudade e bem-estar por saber que existes.

Imensa Noite

15.04.21 | Sandra

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No começo de todos os começos, antes de tudo o mais se ter formado... 

O Tempo soltou-se do universo que se torcia para lá da noite! Partículas minúsculas deambulavam sem sentido onde a luz se refazia e estrelas se formavam. Ventos frios sem som corriam através de nuvens de poeira cósmica, e alcançavam a superfície ainda mole de planetas recém formados. E a noite fazia-se extensa entre constelações que colidiam entre si.

Inúmeros olhares sem rosto voltaram-se para o negro distante do universo ainda em formação, onde outros mundos pareciam existir, mas de lá só vinha a certeza de uma imensidão vazia sem fim. Tanto espaço... Tinha que haver algo mais para além de todo o peso da vastidão medida em anos-luz.

Numa sucessão de eventos toda a criação aconteceu. O ser humano pisou a Terra, e passou a caminhar entre civilizações por ele erguidas no avançar dos séculos.

Certo verão, um telescópio espacial foi lançado e a noite abriu-se ao Homem em todo o seu mistério e esplendor, enquanto ao longe um solitário Urutau soltava o seu melancólico canto à lua, e um mar sem ondas brilhava. O Universo passou a fazer sentido, a noite sóbria também. 

Sem Pressa

11.04.21 | Sandra

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Vamos sem pressa, que o dia é paciente. Vamos trilhar caminhos secretos da luz que quebra as sombras e os silêncios. Por entre o tempo esquecido caminhemos, soltos ao deslumbre selvagem da natureza ao nosso redor. Deixemos que folhagens e musgos decorem os nossos passos, que clareiras e riachos nos acolham, enquanto os sons de aves escondidas ecoam por todo o lado ao mesmo tempo. E sentados nalguma pedra lisa à beira do caminho, com a terra silenciosa sob os nossos pés e suaves odores das flores bravas à nossa volta, falemos então de quem somos, do tanto e do nada que temos para dar. Vamos sem pressa ser nós e deixemos tudo de lado, pois o mundo pode ficar para trás, mesmo que por instantes. O mundo pode esperar. Nós não, temos momentos indecifráveis para cumprir. Faz parte dos nossos primitivos instintos.

O Mundo Avança

08.04.21 | Sandra

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Manhã que chega à minha praceta, segura de si, sem vento nem frio. Sobe o sol imenso acima da linha dos telhados e ocupa todo o campo que se espalha para além do jardim bem cuidado. Recomeça a vida no tiquetaque regular dos ponteiros do relógio, cúmplice da manhã que sacode fortemente o mundo e o coloca novamente em movimento.

O sol ofuscante seca orvalhos e quebra sombras em recantos musgosos. Aves começam os seus voos em busca de alimento e janelas abrem-se ao dia quente, cheio de luz. Estradas enchem-se de carros, e passeios, de gentes que caminham em direção aos seus afazeres. Algures, mundo fora, aviões levantam voo e bandos de flamingos cobrem de cor de rosa os lagos salgados. Noutro lugar distante, os altos cumes cobertos de neve brilham ao sol como diamantes, enquanto animais pastam nas vastas planícies rasgadas pelo vento. Pais deixam os seus filhos nas escolas e pescadores cuidam das suas redes após uma noite de trabalho. Longe, florestas quase inexploradas enchem-se dos mais variados sons e brilhos entre a folhagem alta e cerrada, e num outro sítio longínquo dali, efetuam-se transações entre homens de negócio bem vestidos que trocam um aperto de mão. Semáforos regulam os passos dos transeuntes, e na aldeia, o sino da igreja toca as Ave-Marias enquanto o riacho desliza frio por baixo da ponte rústica. Mais longe, um casal troca votos, e noutro sítio, uma baleia-jubarte eleva-se fora de água, voltando a cair com estrondo. Bebés nascem, enquanto outras vidas partem em paz para outras esferas. Pradarias imensas enchem-se de flores e nas grandes estações das grandes metrópoles, comboios chegam enfim, longos quilómetros deixados para trás. No espaço infinito um satélite sonda a escuridão a velocidades incríveis, e aqui, num canto da Terra, chove torrencialmente. Alguém estuda uma nova vacina. Um pintor termina a sua tela, e um idoso descansa no banco de jardim, jornal esquecido nas mãos, olhar risonho aos pombos e aos pardais. 

Reescreve-se a História, a ciência avança, e o ser humano continua a sua existência complexa que balança entre o poder e a fragilidade.
E aqui, na minha praceta, a manhã continua. Sem frio nem vento. Agora com nuvens brilhantes, fechadas, preenchendo lacunas, saudando a primavera presente. E eu não sei de ti. Mas existes. A manhã sabe-o tão bem quanto eu. Mas já não sei se voltarei a encontrar o que ficou para trás. O mundo avança, não é? Não me esqueças nunca!

 

Mais mundos em:  https://cronicassilabasasolta.blogs.sapo.pt/nao-esquecas-19502?tc=77719636450

 

Telhados

05.04.21 | Sandra

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Telhados que se deitam ao sol, abertos ao dia imenso que se estende junto ao rio. Pulsa neles o calor da nova estação, juntamente com o riso do vento que rodopia entre as telhas e os ninhos de andorinha disfarçados sob os beirais. Águas-furtadas deixam voar conversas alegres, e gargalhadas joviais saem para a rua pelas janelas abertas de par em par. Arrulham os pombos indolentes nos parapeitos, onde as roupas perfumadas e alegres abanam nos estendais. Em algumas portadas de madeira com tinta descascada resplandecem vasos de cravos e sardinheiras, cores que saltam da terra seca. Chegam aos telhados o eco dos passos das gentes que percorrem as vielas, e o som de uma concertina presa nos dedos de alguém que canta o amor. E nas sombras dos becos, gatos lambem as patas, de olhos gulosos presos nos pardais que sobem e descem aos telhados, despreocupados. Os ponteiros do relógio arrastam-se, cheios de esperanças, vendo lá ao fundo as embarcações que sulcam devagar as águas paradas do largo rio que namora o céu e a ponte. E o dia decide fazer uma pausa. Junta-se aos telhados quentes, e os dois, em silêncio, de mãos dadas, olham o mundo à sua frente onde a alegria da vida desfila, enquanto lá no alto desolado, um avião risca o azul prometedor do céu distante