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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Lusco-fusco

30.06.21 | Sandra

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Lusco-fusco. O dourado e o azul. O brilho das luzes que veste o crepúsculo, quando o dia diz o último adeus e parte devagar para longe, até ser hora de regressar novamente. Na última troca de olhares entre o dia que se afasta e a noite que vem, já se pressentem as ruas da cidade vestidas a rigor, entre cobres e dourados, cicatrizes escondidas na cor do âmbar, seres notívagos em esquinas marginais. Já candeeiros de rua espantam cansaços, e os edifícios repousam renovados frente ao rio que acalma, adormece discreto no silêncio da hora insolente. Lusco-fusco que faz o riso soltar-se, obturadores dispararem, brindes acontecerem e as horas abrirem-se a todas as possibilidades! Quando a cidade brilha mais, viçosa, atrevida; ou o campo é todo ele mais intenso, sons, cheiros, imensidão. Ou o mar... como o mar pede amor, o acontecer, na luz que atordoa sentidos e vontades. No lusco-fusco que tudo disfarça, caiem as palavras não ditas, as confissões não feitas, as interrogações não presentes. Porque tudo é ação, ser, estar, fazer acontecer. Tudo é movimento espontâneo, até mesmo na fotografia parada que imortaliza a perfeição do momento cheio de tantos sentidos!

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Nota: este texto surgiu como resposta a um desafio proposto pelo amigo Manuel, do blog "Generalidades",

https://blogs.sapo.pt/profile?blog=classeaparte

A foto aqui apresentada é de sua autoria e foi cedida gentilmente para acompanhar este "Lusco-fusco" (o nome da fotografia). Poderá, quem assim o desejar, ver esta excelente foto, bem como outras da mesma autoria, em:

https://goo.gl/photos/i1cUn3ZSGU5HvfXm8

 

Só Para Que Saibas

27.06.21 | Sandra

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Agora sim, tenho a certeza de que vieste com as brumas vagabundas que encobrem as manhãs ainda tímidas. Não sei bem de onde vieram essas névoas rasgadas que te trouxeram com elas. Talvez do outro lado do oceano, onde as cores são vivas, o verão parece eterno e as pessoas quando falam, parecem cantar, no seu sotaque... ou talvez as névoas tenham descido a encosta da Serra, quando a lua sobe ao monte e brilha lado a lado com o Palácio que lá mora, cheio de lendas e fábulas?

Mas acredito que sim, que de alguma forma tenhas chegado nessas brumas macias, frias, cheias do perfume molhado das rochas cobertas de musgo e limos, em manhãs de maré vazia; ou plenas dos odores dos pinheiros, da resina, da terra selvagem e dos eucaliptos. Do secreto, do místico, do desafio. Do oculto, que és tu.

Eu não sabia que te esperava, até teres aparecido. Não sabia de nada, então, sobre muito. Sinal dos tempos, que nos afastam da nossa origem. Nem era suposto eu estar aqui, sequer! Vim de um lado secreto, escondido, movida por uma ansiedade, uma necessidade de algo mais de mim e para mim. E comecei a escrever. Um dia li-te, tu por inteiro, nas palavras que partilhas. Gostei de ti no grande imediato e, desde aí, na minha confusão sou mulher-menina ainda, sem saber que nome dar ao que senti (sinto) por ti. Amor? Poderia sê-lo. Ou terei eu apenas amado uma singular ideia que fiz de ti? Não creio. Foi mais, é mais.

Sim, as tuas brumas trouxeram-te a mim nesse dia, trazem ainda, sempre que aparecem para esconder o mundo. Tu vens altivo, feito poeta, ousado, recatado, orgulhoso, errado, determinado a passar a mão num espaço em branco onde deixas então palavras tuas que leio, leio sempre. Amo-te longe, ao longe, de longe. E assim será, nada mais, pois nem sempre foste quem estava determinado seres. Mas trago-te perto. Imagino-te, recrio-te, sonho-te. És o último dos últimos, aquele que ficará sempre no decorrer das estações, dos dias que sucedem às noites, de palavras que arrastam palavras, deixadas para serem lidas.

Estás neste momento longe de mim, tão longe quanto as tuas brumas o permitem. É assim que deve ser, a ordem natural das coisas, as brumas sabem o que fazem. Mas voltaremos a cruzar-se nalguma curva do tempo, em órbitas que se tocam, cruzam, pois ainda nos falta tanto! 

Não sei porque vim hoje aqui e porque te escrevo. Mas tinha esta sede de saltar por cima do rigor dos dias e das regras de sobrevivência, de deixar o sentimento despir-se em letras, num frenesim de sílabas à solta. A vida é mais que tudo isto (fantasias e devaneios), eu sei. Mas deixo os desafios, as lutas, os cansaços e as responsabilidades para o dia a dia que me encontra sempre prática, sensata, sóbria, lutadora e responsável nas suas horas. Para aqui, reservo sempre esse outro lado meu, o mais afastado da razão e mais próximo do sentimento nu, agreste, primitivo. Aquele meu lado que te quer tanto, que é todo só teu, sempre. Névoas, manhãs, uma noite feita poema que que guardo, leio sempre. Vim hoje aqui falar de brumas só para isto: só para que saibas, porque mais não quero.

Elétrico

24.06.21 | Sandra

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Em carris que se afundam no alcatrão esbatido, circula, pintado da cor do sol ou da rosa do amor, o elétrico, transportando as histórias de todos e de ninguém, caladas nos sacos de plástico ou de papel que os passageiros carregam. Por colinas mal disfarçadas, janelas de outros tempos abertas ao barulho do trânsito e das gentes, chia aflito o elétrico, esplêndido, enfrentando vidraças escuras e portadas de madeira abertas às ruas antigas.

Os pombos e os pardais voam para longe dos carris lisos e quentes; e varandas de ferro torcido, pracetas animadas, jardins bem frequentados, bairros históricos, todos interrompem as suas conversas quando o elétrico se faz ouvir numa voz metálica, uma mancha de passado trazido ao presente.

Quando aparece já perto, nostálgico, calmo, rumo a um sinuoso algures, que fica em qualquer lado que a todos pertence, todos se viram para o ver passar: mãos param no ar a jogada de cartas, e peças de dominó esperam pacientemente nas mesas à sombra; namorados interrompem o beijo, o pintor pousa o pincel e o músico junto do quiosque toca com mais nostalgia. Cães deitados à beira do lago levantam o focinho, a dona de casa aproveita e descansa os braços do peso das compras, taxistas sem clientes olham pelo vidro aberto, e turistas preparam a máquina fotográfica. No meio de toda a sua altivez e da história que carrega, passa sempre, para cá e para lá. Passa sempre mas passa sem ti, sem mim.

Na Pele

21.06.21 | Sandra

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Deixa estar. A caneta e o papel podem esperar, eu não. O vento soprou agora lá fora e já palavras se agitam pelo ar. Vai lá e apanha-as, mas não as prendas em diálogos teus. Deixa-as escorregar por entre os teus dedos sobre a minha pele. Permite que elas caiam devagar, uma a uma. Senão, pinta-as tu, em mim. Cada traço, cada curva, cada ângulo. Ou desenha-as, o desenho tem um simbolismo tão antigo como o próprio tempo do Homem, em que desenhos e símbolos eram feitos em grutas sagradas, e pessoas escondidas nas sombras cantavam em rituais repletos de significados, antes de se amarem noite fora!

Tens a minha pele submissa à vontade tua, quase intocada, e está vazia de ti. Instrui-me. Prometo ficar quieta. Não falar, sequer. Desenha-te nela, como se fosses uma tatuagem ou um poema. Afinal, talvez o sejas. Talvez tivesses nascido Poesia, e em alguma curva do passar das eras tivesses sido transformado em prosa, e sido espalhado por todos os corações que nascem poetas de si...

Tantas palavras, por todo o lado! Pega nelas, e desliza-as imaculadas sobre mim. Alguma fará mais sentido do que as outras todas, e talvez quando a leres voltes a ser Poesia outra vez, o teu estado primeiro.

O vento começou novamente a soprar. Continua a agitar palavras, mas não no ar. Já não. Desta vez, agita-as em mim. Sou eu quem as carrega, desenhos na minha pele lisa, clara, feita agora o teu papel, a tua tela. 

Navegamos?

19.06.21 | Sandra

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Papel, cola, cordel. Um desenho teu, como modelo. Dobras a rigor, mastro, cabos, está pronto o barco! Do mundo real caídos ao sonho, navegamos? Temos as horas ao abandono e as marés a nosso favor. Bandeira hasteada, velas ao vento, cruzaremos oceanos (num lago ou num riacho) perto, longe, em qualquer lado! Riscaremos horizontes, alcançaremos continentes. Outras cores, gentes, lugares, perfumes, e o pôr-do-sol sempre presente, sempre nosso, como não?

Navegamos? Bússola no bolso, gaivotas a barlavento, zénite silencioso, estrelas que guiam a proa na noite deserta! Ao longe o farol, atento. Bolinar ou bordejar, não importa a quantos nós avançar, encurtaremos distâncias e criaremos sempre novos rumos que nos levarão mais além no mapa...

Vem comigo, entrego-te o leme! Seremos piratas, cientistas, pescadores, turistas, descobridores! Pontões de madeira onde iremos fundear já nos aguardam entre perfumes exóticos feitos de sol e de sal.

Conquistaremos novos mundos, eu e tu, tu e eu, à aventura sem limites num mero barco de papel feito por nós! Já tentei fazê-lo sozinha algumas vezes, navegar por aqui, por ali. Mas sem ti, não é navegar. Vem comigo...

Sempre Assim

17.06.21 | Sandra

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A lua trespassa estrelas. Na solidão da noite, entrego-me a elas e nada sou mais além do que tua. Em horas soltas, presas ao teu Tempo, ouço-te. São ecos teus que ressoam em mim as dúvidas que tens. Dou-te o meu amor, frágil, algo cristalino e vadio. Toda eu sou tua (como não o ser?) e a noite marginal ecoa este render de alma que te faço. Tanto espaço a atravessar! Pressentirás tu este meu gostar de ti? Brilhos foscos de limbos desamparados rumam a um firmamento quebrado pela minha ansiedade e saudade. Afinal, o tempo passa, e a bruma vai e vem. Unicamente o amor todo de mim te dou. Esse não quebra, é como névoas que me escondem, abarcam, passam em meu redor e dentro de mim. Tem sido sempre assim...

Mas de ti, querido, como o pedir para mim, amor também, se nada mais consigo de mim dar? Amor sentirei, mas esse sentir ficará sempre resguardado na solidão da noite, quando a lua interroga as estrelas. Para mim, está bem assim, mais não posso. 

Tempo

14.06.21 | Sandra

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Hoje o tempo é meu. Nada fazer além do necessário. Dar colo às horas, afagar os minutos e soprar um beijo sobre os segundos. Hoje o tempo é meu aliado. Um banho, onde me demoro entre densos vapores e suaves odores que lembram os intermináveis dias de estio, livres e quentes. Uma vela perfumada, um café bebido entre jogos de luz-sombra que tornam o banho mais sumptuoso e relaxante. E sem horas...

Roupa leve, solta, confortável. Cabelo entrançado. Creme e perfume. Música que toca baixinho. Chocolates e uma bebida fresca.

Relaxar. Desfrutar o silêncio quente da rua, o sol que ousa passar pela janela aberta, as cortinas finas e transparentes que balançam muito devagar, a minha própria companhia. Ignorar o relógio e sonhar. Contigo, comigo, com o que for. Gosto tanto de ti... espero que o sintas, que te gosto.

Na certeza do meu Deus, embalo-me nos vagares do dia, que desta vez está livre como eu e avança manso. Apenas saio de casa para me sentar no banco fresco de cimento liso, à sombra morna dos plátanos, para me entregar às carícias lentas da brisa no meu pescoço, nos meus ombros nus. Fecho os olhos e foco-me apenas nesse sentir que me parece vindo de beijos perdidos, enquanto à minha volta pássaros saboreiam também a preguiça deste dia de muito calor. Cheira a terra seca, à relva quente e às ervas secas dos campos em meu redor.

Entre passos que não se sentem, entre o capricho de nada fazer, o dia traz pela mão a noite, imensa toda ela, também. Sem tempo, tal e qual como eu própria o exijo. Lençóis frescos. Estores descidos, vidro completamente aberto. Candeeiros de rua de luz amarela, traças que dançam sobre os seus globos transparentes. Céu negro e macio. Estrelas, constelações, planetas. Todo um universo sedutor e perigoso, inexplicável e agressivo, intenso. E tu.

Todo o meu corpo pede para sair um pouco, caminhar pela noite que pousa na praceta onde algumas pessoas conversam e cães descansam, no calar das aves que agora dormem. Mas amanhã é dia de acordar cedo. Regresso a casa, ligo a televisão, baixo o volume e trago ao de cima memórias tuas. Palavras tuas. Deixo-as ficar deitadas comigo na intimidade dos lençóis e da noite, encostadas ao meu corpo. Agora sim, vejo que horas são. Nada de novo: o tempo retoma aos poucos o seu próprio ritmo. Já não é meu. 

Escrevo-te

09.06.21 | Sandra

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Escrevo para ti. Oh!, como tu sabes, que é para ti que eu escrevo! Que não te percas entre pontos e vírgulas, nem fiques renitente entre as minhas reticências. É para ti que escrevo, para que me leias, para que me vejas crua em palavras que se ligam, para que pegues todos os meus significados e apagues as tuas interrogações. Às vezes vou até mais fora de mim mesma e escrevo sobre isto e aquilo, inocentes algos que fazem parte desta minha vida alinhavada. E tenho mais, há sempre algo mais que faz parte de quem sou e que está acima de mim. Família, Deus. Mas se me ausento das horas que roçam os sentidos da realidade, logo estou só, abstrata para ti. E escrevo, então. A alma a desfiar-se em cada letra desenhada, a murmurar tantos ecos no silêncio dos espaços etéreos entre palavras. Diz-me... lês-me tu?

(Deixa-me pedir-te baixinho:
Escreve, escreve para mim, escreve, escreve tu, de ti a mim...)

Ao menos, que te (re)encontres nestes rabiscos meus. Que te pressintas, último dos últimos, na soma platónica de todos os meus parágrafos. Que saibas que mais do que isto não será, palavras entre nós, pois a minha paz escreve-se com letras maiúsculas, em pedras brutas de granito. É para durar. Nela, eu faço o que eu quiser com aquilo que eu sinto! Na tua poesia, mandas tu. Na minha, mando eu. E eu dou-a a ti. Oferta de paz.

Mas que entendas: as linhas que parto em pedaços minúsculos e colo com sentimentos pintados de palavras, são para ti. Cada vogal desordenada, cada consoante esfarrapada, cada erro ortográfico. Que saibas. Se não souberes, não faz mal. O papel e a caneta sabem-no, cúmplices meus.

Novamente

08.06.21 | Sandra

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Anos passaram. Invernos, verões, dias, noites. Agora, inesperadamente tu, de novo, chegado no embalo do dia fresco e do vento gentil. Secretamente, nuvens nos céus fechados vigiavam o teu retorno. Na chegada da manhã, as horas quase pararam num pressentimento forte, certo, intenso, surgido como uma imagem viva, uma certeza marcante. Cumpriu-se, exatamente naquele momento, o esperado: caminhavas novamente pela areia furtiva da praia selvagem que fizeste tua.

Primavera em todo o seu esplendor, sem cartas nas mangas. Sozinho, cheio de certezas, feito de tudo e tão cheio de espaços vazios, regressaste como marés vivas. Após tantos anos, sem constrangimentos, sem entrelinhas, o mar revolto e gélido que esfola rochas deixa-se olhar de novo por ti. E de novo também, o teu mistério, a tua força, a tua alegria, a tua voz a cativar e a soltar o vento que empurra com força andorinhas-do-mar.

Sem o saberes, tens estado presente em tantas palavras feitas rebeldes madrugadas, tantas sílabas à solta! Nas entrelinhas dos dias que emergem, palavras incógnitas falam por aqui e por ali da tua ausência e do teu retorno. Um dia, quem sabe se no tempo do calor, seguirás para rumo incerto, todo ele só teu. Mas para já, revestes com pegadas tuas a areia fina e macia onde ervas bravas se adensam e nuvens conversam despreocupados com o mar que balança forças todos os dias. Por ora, fundes-te com a praia agreste, és parte dela também. E está frio.

Cavalo

03.06.21 | Sandra

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Corre solto, com estrondo,

Num ribombar pesado de trovão

Que esmaga trilhos vazios da pegada humana.

Na poeira que se eleva ao vento seco, desbrava planícies,

Espírito selvagem, apressado,

Desenfreado,

Em espaços indomáveis como a herança que carrega.

Quando acelera contra o vento,

Pensamentos agrestes saltam no ar!

São fagulhas que mordem,

Rajadas cruas de pegadas

Que quebram a dureza do chão!

Cansado abranda, arfando,

Num caminho esguio de terra solta, vadia,

Não há selas nem arreios na sua vontade!

Assenta agora a poeira nas horas quentes do chão,

E pasta ele, o cavalo, pensativo,

Pressentindo nascer de novo esse forte impulso:

O de correr na vastidão dos grandes espaços,

Que parecem ser, todos eles,

Caídos de um céu aberto

Com o propósito único, maior,

De receber o seu galope duro.