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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Reconhecimento

30.08.21 | Sandra

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Não sabia se alguma vez eu te iria encontrar, apesar de pressentir que há muito tempo algo indefinido me conduzia em direção a ti. E um dia, encontrei-te.

Foi uma espécie de reconhecimento, quando no silêncio quente de uma só noite eu aprendi cada um dos teus marginais significados. Soube nesse preciso momento que há caminhos poderosos que viajam pelos séculos como beduínos carregados de histórias e conhecimentos secretos, em crepúsculos que se estendem sob todas as tonalidades do horizonte deserto.

Descobri-te num desses vastos caminhos que se estendem nos desertos onde as partilhas ficam gravadas, e apaixonei-me pela tua alma imensa, vagabunda, onde cabe todo um universo com as suas distâncias avassaladoras, as suas constelações, explosões, aglomerados estelares, planetas.

Li-te letra a letra. E deixaste de ser bruma. Os teus traços mostraram-se como rituais sagrados e cânticos de antigas tribos nómadas, que celebravam a vida trazida pelo nascer dos novos dias, ou as noites de calor ávido, quando estrelas e mar prateado, parado em lua, guiavam os corpos dos amantes.

Sigo-te desde aí.

Quando escreves, deixas a pairar no ar o cheiro intenso do verão, quando ervas secas abanam devagar nos campos, ao sabor da brisa demorada. Ou quando a praia brilha branca na luz dormente do meio-dia, que conduz ao oeste. Ou ainda, quando a chuva se entranha na terra seca e o corpo despe-se para a receber também lasciva, em si.

Ainda não encontrei uma palavra que defina o que me fazes sentir. Talvez ainda não tenha sido criada, ou talvez já esteja extinta, como as primeiras chuvas caídas na Terra ainda quente e árida.

Mas não importa. Acompanho-te mesmo que ao longe, do lado de lá de névoas e amanheceres longínquos, onde descansas do que escreveste com a noite inteira na tua mão. O que me importa é que te encontrei.

Sabor de Ti

26.08.21 | Sandra

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Hoje é uma daquelas vezes em que a noite poderia ignorar o avançar dos ponteiros do relógio e prolongar-se por mais tempo. Está muito calor, apesar do céu forrado de densas nuvens. Nada se move, nem sequer as folhas do jacarandá que marca a curva do caminho. O silêncio é tremendo e há muito que as ruas dormem. Caminho devagar, apesar da hora adiantada.

Gosto de noites assim. Lembram-me de ti e do poder que sempre tiveste sobre mim, desde o primeiro início em que me chamaste à tua escrita. Sei que estás acordado também, preso ao emaranhado da tua escrita - ou aos teus antigos fantasmas. As tuas palavras são feitas de sentidos que ainda hoje estou a descobrir. Têm um poder próprio, primitivo, como se fossem feitas de letras muito antigas, caídas dos séculos que passaram, mas ainda cheias de substância, magnetismo, oculto. E tu usas essas letras como ninguém.

Trouxeste-as contigo de lugares distantes, por onde passaste quando eu ainda não sabia de ti, para espalhares cada traço em redor das minhas sílabas. Estás em cada uma delas, em cada palavra que corre pelas civilizações construídas pelo homem, com torres que rasgam as nuvens; na vastidão imensa da noite quente do deserto, quando um coiote solitário uiva à lua crescente, e para lá do horizonte, carros cruzam em silêncio autoestradas largas e bem iluminadas. Nas florestas cerradas que escondem trilhos e lendas, em recifes de corais onde a vida calada acontece.

Tu sabes. Estás em todo o lado. Entre o mar e a Serra, venceste. Já não sei não te ler. E é assim que deve ser: tu escreves, eu leio, ainda que nada te diga. Mas até esta noite quente, calada e parada, sabe a ti. É bom. Pego nas memórias boas que me deixaste, e meto-as na cama comigo.

Fiquemos

24.08.21 | Sandra

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Uma imensa paz. O sol doce de fim de tarde já se desfez todo no ondular salgado das águas mornas, que nos conhecem tão bem.

É esta a nossa hora secreta. Pousa a tua mão na minha e conduz-me onde sabes que quero ir. Leva-me ao nosso momento feito de oeste e de maré cheia. 

Na vastidão parada do mar em ouro, que há muito espera por nós, somos corpos entrelaçados sem pressa, silêncio denso e brilhante, quebrado apenas pelo vagaroso remexer dos nossos gestos na procura um do outro. Reflexos dourados fundem-se com o molhado das nossas peles, e flutuam sem peso até à linha do horizonte invisível que nos ofusca em si.

Olho-te sem saber de que cor são os teus olhos. Parecem conter neles todos os mares, as idades do sol, as fases da lua, constelações imensas. Mas o beijo que me dás sei-o bem: tem a certeza da brisa, do crepúsculo, de risos, de verão interminável feito das letras do teu nome. Já lá estivemos antes...

O beijo, que escorrega no nosso abraço lento, coberto das gotículas transparentes que refletem as cores do ocaso. O beijo, que assiste connosco ao pôr-do-sol num mar eterno, sem ondas nem sombras. O beijo, que se prolonga até ao mergulhar das horas nas asas das gaivotas presas ao poente.

A noite há-de chegar imensa, carregada de segredos e estrelas, para nos acolher, simples aprendizes, em si. Tu és ser da noite, fiquemos. Não foi para isso que viemos de tão longe, para o amor acontecer?

Manhãs de Névoas

20.08.21 | Sandra

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Há manhãs que descem rodeadas por um sentido de oculto, algo escondido nas névoas criadas pelo evaporar da forte geada tombada nas longas horas da noite. O sol é apenas uma ténue claridade num céu estranho, desfocado em várias dimensões, e até a luz é húmida e difusa, sobre caminhos irregulares, campos e jardins fechados em si mesmos, tímidos, contidos na friagem que os pisa.

Saio à rua. Gosto de caminhar sozinha na constância dessas brumas frescas, palpáveis. Quero imaginar que estás perto, que a qualquer altura vou ver-te. Cada passo dado atenua as brumas, define os contornos do caminho, os pinheiros, os plátanos seculares, os agapantos tristes. Mas não te vejo.

Compreendo: pertences a algo maior, a parâmetros feitos de grandes escritas, às ruas apinhadas de rostos que não sabem de ti, à noite incapaz de dormir enquanto tu permaneceres acordado.

Vieste de outras paragens, caminhos também eles cobertos de sóbrias brumas. E por lá andas ainda hoje, captando o sentido do belo que ainda existe, trazendo ao de cima a amplitude da natureza que se expande no teu imaginário, criando cenários e dimensões que me espantam e aos quais eu quero pertencer. Ser um pouco tua...

Talvez seja por isso que não te vejo nas manhãs em que me torno parte das névoas: o outro lado de ti apreende-te, mantém-te nesses lugares ocultos que só tu conheces, escritas tuas despidas em sílabas soltas.

Mas talvez não seja assim. Talvez estejas por todo o lado, talvez estejas aqui perto, sempre que letras saídas de ti ficam de tal forma gravadas nas tuas partilhas, que tu próprio te surpreendes. Talvez eu consiga estar acolhida nesse teu caderno escondido dos dias, talvez um dia soletres lá o meu nome, em maiúsculas. E aí, ver-te-ei sempre nessas manhãs adormecidas de névoas húmidas e claridade difusa, sem precisar de te procurar ou esperar.

Vento em Ti

18.08.21 | Sandra

20200920_103434.jpgFaço-me vento e parto em busca vã de ti. Sopro nos caminhos que percorres, todos eles feitos papel em branco, onde as palavras que escreves são pedaços escorridos da tua noite e estilhaçam tudo por onde passam.

Há esquinas que sabem de ti, conhecem-te o peso dos passos e das letras, reconhecem o deambular das horas tuas que não sei traduzir. Passo por elas, pergunto por ti: não sabem onde estás.

É quando me transformo em vento alísio, decidida a deslizar sempre nas madrugadas ensonadas que te veem dormir, no perfume da chuva macia que um dia há-de entrar pela tua janela aberta, no céu noturno que te compreende melhor do que eu.

Se um dia me sentires por perto, só por uma única vez, fica quieto, para que eu seja finalmente brisa costeira, e ainda tímida, te possa abraçar, ser transparente vento em ti.

Momento

16.08.21 | Sandra

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Crepúsculo. Hora de mistério e transição, em que só conta o aqui e o agora. Trago-te ao momento.

Não há vento, e as horas param vadias no ar estagnado e quente. No intensificar do lusco-fusco, o céu abre-se em tonalidades que rasgam toda a vastidão do horizonte, e ao alto tremem confusas as primeiras estrelas. As árvores transformam-se em negras e sóbrias silhuetas, contrastando com um céu que aos poucos escurece também, em entrelinhas de palavras não pronunciadas entre nós. Vejo bandos de pardais barulhentos a esconderem-se à pressa entre a folhagem espessa dos ramos, que se preparam também para adormecer no abafar de loucuras sem nome.

A noite finalmente chega por inteiro, lasciva, marginal, sobre a praceta, o jardim, o parque e os campos de perfumes nus. A lua quase cheia parece maior e mais brilhante que o costume. Abraçava-a, se fosses tu ali, vagabundo! Oiço algures um melro, e ao longe um cão ladra animado à escuridão que o desafia. Está calor e alguns miúdos ainda jogam à bola no campo seco aqui ao lado. Riem despreocupados e falam alto.

Saboreio sem pressa a minha bebida fresca e olho para a linha definida do horizonte: o farol imponente no seu luzir rítmico, sereno. As luzes acordadas na cidade adormecida, em brilhos que se desfazem. Vivendas solitárias, ladeadas de terrenos selvagens; e no alto da Serra, o Palácio da Pena, mal escondendo os seus mistérios e superstições.

Relaxo, sinto em mim toda a serenidade lasciva que me cerca. E embrenho-me em recordações... há sempre alguém especial que inevitavelmente será lembrado numa noite assim. Deixo-te chegar, quero pensar em ti. O meu coração bate forte num misto de saudade, interrogações, uma vontade louca do quebrar do teu silêncio em palavras desenfreadas, estilhaçadas, quando se dá o "tudo ou nada"! Mas está muito bem assim.

Olho novamente o céu. Termino a minha bebida, inspiro uma última vez o ar quente e seco da rua, e despeço-me a custo da noite provocadora. O seu silêncio é o meu cúmplice; em todas as nuances, o meu amante perfeito.

Fecho a janela e preparo um banho a meia-luz. Sinto este desejo boémio de fechar os olhos e demorar-me no toque lento da água quente no meu corpo, no meu cabelo. Entre as formas do vapor denso que preenche todo o ambiente e embacia o espelho, sinto-me limpar também a alma, regressar a mim, à minha essência, às minhas convicções e à minha esperança. Se estivesses aqui... o teu nome sussurrado. Em corpo de mulher, o meu coração volta a ser pequenino outra vez.

Noite de Perseidas

13.08.21 | Sandra

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Talvez a noite saiba mais que nós. Não sei se ela será capaz de intuir o que tantos poemas traçados por mim, por ti, expressam, mas talvez consiga escutar ecos longínquos, de um espaço maior que tudo aquilo que é humanamente alcançável. Sopra um vento contido e esta noite prende-se num silêncio diferente, mais sóbrio, mais desperto. Relaxa-me ver as luzes distantes para lá dos campos, dos prédios, junto ao pedaço de mar que avisto da janela, onde o farol brilha sob o radiante que se eleva no céu. Novos rumos...

Hoje é noite de Perseidas e as luzes nas colinas da outra margem também esperam por elas. Numa noite assim, com rastos de meteoros que percorrem uma grande distância no céu, com Júpiter e Saturno a adormecerem nos braços das constelações de verão, estás tu presente sob a forma do vento que se senta ao meu lado, que me abraça pela cintura, que pousa a cabeça no meu ombro e olha comigo o horizonte límpido.

Talvez a noite do oeste me possa falar de ti. Talvez para lá das estrelas, dos planetas e galáxias, um satélite possa captar o sentido de tudo e enviá-lo até ao espaço entre as minhas palavras. Talvez tanto me fosse finalmente desvendado. Conseguiria esse satélite apreender a singularidade que tu és, quando as tuas palavras sem rotas me fundem nelas e transportam a tantas outras noites como esta?

Sim, a noite sabe algo mais do que nós, e tudo isso faz parte do mistério, do inexplicável, das certezas que rodam o céu entre Aquário e Capricórnio. A noite sabe algo mais mas não interfere, apenas caminha com passos firmes pelo girar combatente dos ponteiros do relógio.

Nesta noite estrelada de temperatura amena, em que só as Perseidas compreendem a afirmação oculta estabelecida entre nós, já toda eu sou só o mundo que criaste para nós. E devagar, sem pressa, o amor acontece.

Aprendiz Peregrino

11.08.21 | Sandra

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É este o momento da nossa singularidade, vem cá. Vês ali ao longe as névoas douradas que se agitam lentamente à subida dos céus? Brumas que repousaram pela calada do escuro, e que agora se esfarrapam, despem, desfazem na luz que deforma e arruma fragilidades?

Parecem esperar por nós, aguardar que os nossos passos atravessem espaços de silêncio e contenção, para serem compreendidas finalmente, para que a sua substância se dissipe, realizada enfim, num sol concreto de palavras ambíguas, outrora sumidas, agora reconhecidas por nós. 

Vês como o campo resplandece, como a erva rasteira sacode o orvalho, como as copas das árvores se expandem no cheiro firme da terra ainda fria e molhada? Como o silêncio é húmido e palpável, colado aos nossos risos e poemas? Repara como se vinca a sensação de intensidade, de clareza, de paz alcançada, de segurança. De confissões realizadas, confirmação! E já é dia!

Nada interfere na natureza deste lugar que é nosso, e tanto fica diluído nesta vastidão que se despe às nossas descobertas, nos abriga, esconde, sugere secretamente. 

Vamos, vem, a neblina parece afastar-se e eu quero as certezas dela, saciar interrogações, deslumbrar-me com o espanto de tudo, antes de falarmos de nós! Mas antes ainda, antes de as brumas serem eu, tu, nós, dá-me a mão, aprendiz-peregrino, dá-me um beijo, o teu beijo, feito ele também aprendiz, também peregrino. Depois, vamos então!

Abraço Que Se Dá

09.08.21 | Sandra

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Abraço-te em toda a longitude que um abraço pode ter. No etéreo do horizonte, procedo à soma de todas as equações que te rodeiam em caladas noites, quando submergem as sóbrias palavras que desnudas à tua escrita angular, nas tuas horas que não têm peso, e que te permitem ser por inteiro.
Abraço-te pela calada do silêncio haragano, um abraço vagabundo, feito de equador e de rosa dos ventos. Talvez a tua janela esteja aberta à vastidão da noite, talvez numa pausa do teu escrever sintas, em invisíveis margens das brumas tuas, o meu abraço que se acerca de ti, vagaroso, insinuante, derrapante. Talvez um dia, no concreto das potências do amanhã, atravessando as rasgadas passagens da orla do tempo, escrevas em tinta impermeável: Um dia, abraço-te!
E até lá? Soletra a palavra Abraço, eleva-a ao infinito e multiplica-a no teu escrever deambulante. Se tu deixares, eu andarei por lá, sílabas à solta...

 

Nota: texto escrito a convite da querida amiga Daniela Barreira, que lançou o encantador desafio "Abraçar outras palavras".

Poderá acompanhar o seu maravilhoso blog "Menina dos Abraços" em   https://blogs.sapo.pt/profile?blog=danielabarreira

 

 

 

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