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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

O Teu Outono

29.10.21 | Sandra

px-downloadg61bb8ad1e140b76dfceb087153647fff82b3a3Avanças despreocupado pelo teu outono, que se passeia contigo também, entre os verdes e dourados do avançar lento dos dias. Folhas tombadas ao chão rasgam-se sob as tuas passadas, que levantam ao ar o aroma próprio da terra molhada. Ecoam à tua volta os enigmas densos da Serra, os sons das aves despertas, do estalar de ramos, do caminhar firme e pausado de animais que não se veem.

O mistério dos caminhos que escolhes cala-te palavras desnecessárias, e diz-te que é cedo ainda. Fala-te das névoas cerradas que o frio há-de trazer quando os dias ficarem ainda mais curtos, dos musgos e heras que hão-de cobrir penedos e cantos escondidos, da humidade que há-de embaciar janelas e humores em dias de chuva lenta, inquebrável.

Mas ainda não, é cedo ainda.

Para já, é tempo do teu relvado encher-se lentamente do dourado das folhas quebradas e do verde frio dos trevos frescos, sob um sol esbranquiçado que mal aquece. É tempo dos primeiros cogumelos aparecerem junto aos muros escuros da tua casa, enquanto aves coloridas saltitam alegres por entre o arvoredo do teu quintal em busca de alimento. É tempo de limpares a tua lareira, de provares os teus licores de tons quentes, de pousares novos livros junto à tua manta de lã, e de te misturares na luz que preenche a tua sala e a torna ainda mais apetecível.

É tempo de seres o teu melhor, na certeza de que estás onde pertences e de que és também, em parte, outono. Eu gosto que assim sejas, é a estação do ano que mais me deslumbra por ser simultaneamente prosa e poesia. Como tu és para mim, aliás... 

Capricho

25.10.21 | Sandra

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No acordar vagaroso do dia, quando as horas ensonadas permanecem ainda deitadas na friagem da manhã virgem, vejo-te chegar, olhar pleno, astuto, cabelo sem rumo a lembrar o mar impulsivo em dias de temporal.

Abraças-me num momento cheio de cores e arabescos, onde divaga sempre o teu perfume indefinido cheio de um desfazer de encruzilhadas.
No cedo do dia  (é tão cedo ainda!) retribuo o abraço num silêncio que pede que me abraces mais, mais ainda, mais um pouco...
Se temos tempo, porque não? Usemos então a imparcialidade das horas que se erguem como pirâmides neste dia que quero meu!

Abraça-me então, agora, já, mais logo, e depois! Abraça-me sempre! Se é capricho, que seja! É só mais um, entre tantos...

Cidade

18.10.21 | Sandra

px-downloadgd285ebbd9ba1547e739186da50262878e36ebeEncosta-se o cinzento do dia ao cinzento dos prédios.

Janelas abrem-se ao aglomerado de outras janelas,

Abertas também,

Imunes ao ruído monótono

Do trânsito que se arrasta rouco

Pela rigidez das horas.

Avenidas de sentido único são calcadas por passos largos 

Que passam ocos,

Sem deixar sombra ou marcas.

Cruzam-se pessoas sem se verem,

Mentes cheias,

Bolsos vazios das cores,

Da música,

Do tempo necessário para se poder ter tempo.

E no alto,

Longe dos ruídos e das pressas,

Voa barulhenta uma gralha-negra,

Parecendo ser ela,

Poderosa e tão bela,

O único elemento que realmente vive

Na selva de betão

Que te acolhe por uns dias.

Neste começo de outono, és viajante estrangeiro.

O cimento oculta-te,

A cidade ocupa-te,

Mas regressarás.

Regressas sempre,

Com todas as histórias que serão despejadas em monte

Nas minhas mãos

Sempre abertas às tuas!

Metamorfose

14.10.21 | Sandra

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No silêncio ensurdecedor do cruzar das estações voa magnífica a borboleta, asas finas a lembrar telas frágeis de Picasso, ou antigos vitrais que brilham solenes à contraluz.

Mas antes de ser borboleta foi metamorfose. Rasgou ao meio a gravidade, quebrou as leis da física, deixou no casulo vazio letras, rascunhos, rotas, hemisférios cruzados pelos valentes descobridores que conquistaram mundos novos e viram outras como ela.

Foi metamorfose antes de ser magnífica borboleta. Hoje acende-se no furor do dia, cede ao magnetismo do néctar em flor! Depois, satisfeita, saciada, bate confiante as asas. Imagina-se asa-delta e, provocadora, desafia o mundo, voa mais alto ainda!

Os pioneiros da poesia são também borboletas a decorar os jardins do mundo, com as suas crisálidas onde nascem poemas teus.

Ser Manhã

08.10.21 | Sandra

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E agora, é manhã!

Escolho o sol,

O acordar em escala musical,

O soletrar poemas que na noite não se veem

E que afinal correm como cometas

Atrás dos cães saltitões...

Mas é manhã, agora!

No calor que embate no dia

Entre aves invisíveis

E mapas por abrir,

Desperta a praceta arrumada

Espreguiçam-se as ruas,

Secam cantos e recantos das horas completas

Que arrasam o azul louco do céu.

Desperto eu também.

Corpo nu ainda quente no calor demorado

da cama vadia que me aceitou.

E é meu o prazer,

Este amanhecer,

Este despertar,

O outono que já sem sono

Faz-se terra calada, pintada...

Acordo sem demora,

Pronta a deixar-me ficar

No calor macio do teu poema

(Oeste, em macias brumas)

Onde se aconchega a minha pele

Que não sabe ser mais nada hoje

Senão manhã, agora de outono.

Jardim Visconde da Luz

07.10.21 | Sandra

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Desço sem pressa a rampa em direção ao jardim, entre as pedras da calçada afogueadas no calor inusitado da manhã, e o alcatrão preguiçoso que pasma obtuso para o cheiro a sardinha assada. Tenho postos em mim os olhares dos pombos e das rolas, que parecem trovadores à porta do Visconde da Luz, ainda vazio aquela hora.

Agitam-se as ruas típicas da vila numa confusão alegre. Hoje o jardim urbano, que viu nascer séculos, aparenta um certo ar de descontração, festividade. Os barulhos que vêm do quiosque de ferro trabalhado, junto com as vozes dos empregados e o aroma a café e torradas, são música de fundo para a esplanada fresca, cheia de conversas tranquilas e gargalhadas despreocupadas. Sento-me no único lugar vazio.

Entre hortênsias e amores-perfeitos, sob plátanos inquebráveis e coloridas laranjeiras, alguns turistas deitam-se no relvado de um tom verde desbotado. Um cão acalorado olha desconfiado para o gato do jardim, que cobiça sem grande convicção os pardais que saltitam à sua volta, à distância de um curto salto.

Hoje o carrossel está parado. Ao lado, encostado à fonte de pedra lisa e águas esverdeadas, um estrangeiro toca uma música italiana na sua concertina colorida. O calor adensa-se nas sombras quietas, estica-se nos bancos, na relva, nos muros baixos que sabem mais que os taxistas, que sem clientes, conversam encostados aos seus carros. Calam-se quando um grupo animado entra no Jardim dos Frangos.

Mistura-se o silêncio do avançar da manhã ao falar das folhas secas, que os plátanos emprestam ao outono quente. O tempo para, tal como o movimento junto às bancadas de antiguidades e artesanato. E eu, saboreando descontraída um café, na esplanada sempre cheia, desejo-te ali ao meu lado neste dia de sol espevitado, quando Cascais se esquece de que já não é verão. 

 

Nota: para saber mais sobre este jardim, visitar o link  https://www.visitasvirtuais.com/local.aspx?id=JardimViscondeDaLuz

 

Rosa

03.10.21 | Sandra

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Na luz esbranquiçada que escorre de um céu parado e baço, brilham ainda as gotas que ficaram da última chuva caída da madrugada tímida.

Foi nessa altura que, sob um céu colossal, a roseira fechou os olhos
e, ansiosa, autorizou o deslizar vertiginoso da água até às suas raízes esculpidas na maciez atrevida da terra.

Saciou-se então a rosa, mostrou-se, fez-se altivo soneto, letras vadias a pulsarem nas formas insinuantes das suas pétalas, aguardando a manhã que estava para chegar.

Nessa espera, suspirou longamente o jardim, vezes sem conta, inquieto, siderado pelo amarelo desconcertante daquela rosa tão singular, que secretamente já não sabe ser rosa sem o seu jardim.

Apaixonei-me também eu pelo seu encanto peculiar. Não a colho, mas seria a rosa que eu te daria a ti, que tanto me fazes sorrir com as tuas palavras que são como as ruas brancas floridas ao sol quente de verão, onde escrevo o teu nome.