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Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

A Melhor Hipótese

29.09.22 | Sandra

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As cores acendem-se na luz da tarde sossegada. O derradeiro calor marca a viragem do tempo e senta-se comigo nos bancos de jardim. Pombos assustados levantam voo para longe, levantando folhas do chão. Um grupo de miúdos esmaga o relvado, persegue-os, tenta apanha-los. As pessoas conversam de forma descontraída sobre os cheiros da nova estação que chega e questões políticas que desassossegam. Um cão feliz ladra aos patos indolentes do lago, que na segurança da água fingem não o ver ou ouvir.

Quando um segundo se transforma no outro, firma-se a certeza de que te vou ver a qualquer momento. Sempre essa certeza. Porque um dia reconheci-te nas primeiras horas das primeiras palavras por nós trocadas. Limbos desertos tão cheios de nada, na sensação de te conhecer desde sempre.

Reconheci a tua presença, algo tão singular e tão forte que só pode ter vindo doutros mundos misteriosos que sabiam de nós. E desde aí, de forma impercetível, rapidamente firmaste bons sentimentos em mim. É só por isso que eu passeio pelo jardim do campo que é cidade, neste outono que é nostalgia sem tempo e, simultaneamente, avanço. Porque eu sei que estás por perto, porque poderei ver-te a qualquer momento, mesmo que seja para te olhar de longe e dizer para mim mesma: "As coisas estão bem tal como estão. É esse o equilíbrio que deve ser mantido. Senão, nem valia a pena ser outono".

E depois, talvez depois, com o coração a bater mais forte, ajeitando o cabelo, depois talvez eu vá ter contigo e te fale finalmente sobre as sílabas à solta que são eu. É essa a melhor hipótese. 

Noite Lá Fora

28.09.22 | Sandra

 

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Ah, se soubesses! É o teu nome, sempre o teu nome, vogais e consoantes feitas do vento que sopra na noite louca lá fora, e que quero sentir por toda a minha pele tão cheia de calor.
É por isso que hoje eu recuso-me a fechar a janela, porque eu quero provar o roçar desse vento estonteante que és tu, e quero ser eu esta noite que te apanha desperto, puro e maduro, no aconchego do teu espaço.

Sim, eu sei que estás acordado. Provavelmente olhando as palavras que crias, que escorregam nuas entre os suspiros dos ponteiros do relógio e as tuas mãos, que secretamente afagam sombras minhas arrancadas à tua imaginação enquanto o sono não vem.
Estás acordado, não estás?, nesta hora tardia em que a noite vai alta e incógnitas fazem amor sob um universo indiferente e metódico?

Ainda és criatura da noite, não és? Ainda continuas fechado às  madrugadas exuberantes e às manhãs luxuriantes, quando eu desperto e torno-me o sol nascente despido de pudores que tenta provocar-te? Ah, tu!

Não me importa. Importa sim esta noite lá fora que, sendo só tua desde conjunções planetárias únicas e percentagens, por hoje é minha também.
Só me importa a noite lá fora, por isso hoje recuso-me a fechar a janela. Porque na noite lá fora sopra estonteante o vento e ele, que pressente o calor faminto da minha pele, ele cria as vogais e consoantes do teu nome que ainda hoje é murmúrio noctívago, marginal, lascivo que me acende.

Amor, Por Inteiro

27.09.22 | Sandra

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É agora, é este o momento. Vamos passear acima das nuvens? Vamos encarar o sol de frente, abrir os braços ao vento seco que desliza lá no alto e pintar o céu com um novo azul? Vamos saltar por cima das grandes montanhas e deslizar pelas encostas que descem até aos vales cheios de erva fresca, e às florestas que escondem espécies por descobrir? Vamos sentar-se nas margens de todos os rios, e ver os peixes falarem em segredo sobre o quanto te anseio?

E à noite? Que tal deitarmos os nossos corpos na areia tépida do deserto para olharmos as estrelas por cima de nós? Tentaremos adivinhar onde está Baiame, para que ele nos mostre os grandes eclipses da História e nos conte as lendas antigas passadas entre gerações! Talvez uma estrela cadente se acenda de propósito para nós e possamos pedir um desejo!

E que tal no momento exato antes do amanhecer olharmos de perto os grandes embondeiros e baobás, vermos o movimento das grandes manadas que atravessam longas distâncias, e trocarmos um primeiro beijo sob a chuva mansa impregnada das cores deste outono ainda jovem?

Depois? Depois o silêncio, a compreensão de tudo, o soletrar de todos os significados. A derradeira fé, aquela que nos conduz de regresso a nós mesmos e nos convida à vida! O amor, por inteiro.

Vamos Ser Outono?

23.09.22 | Sandra

 

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Equinócio.

A calma silenciosa.

A certeza do que importa.

Os ajustes,

Não querer menos nem mais.

A vibração que liberta energia,

Cria caminhos, 

Transforma realidades.

Primavera inversa,

Não o despertar mas o descanso, 

A pausa.

O poder e o equilíbrio. 

Entre os amarelos, tons alaranjados e os últimos verdes,

Permanecemos nós,

Texturas e luz morna que segura os dias.

Dá-me a mão.

Vamos ser outono?

No Despedir do Verão

21.09.22 | Sandra

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O tempo parece parar. Ofereço-te esta lua silenciosa que caminha pelo céu claro da noite como rainha, levando ao seu lado uma estrela incógnita.
Está muito calor e a brisa morna mal chega para sacudir as folhas já secas dos plátanos, das mélias e das olaias. O salgueiro-chorão faz ondular vagarosamente os seus ramos longos, caídos até ao chão, que lembram cortinas leves a esvoaçar na alma dos seres maiores que contemplam o firmamento.

O choupo-branco oferece todo o seu colo às aves pequenas, despertas ainda. Imóveis nos ramos, com as suas penas carregadas do cheiro do verão, o mais quente de sempre, murmuram em uníssono indecifráveis sílabas feitas de música. São melopeias antigas, vindas do tempo dos grandes Xamãs e das poderosas danças tribais na noite obscura, antes do amor se cumprir sob um céu estrelado.

A noite avança. As constelações e a lua mudaram de lugar. Mais um ciclo que se fecha. O verão deixou a terra seca e dura, preparada para o outono. Enquanto ao longe relâmpagos anunciam a trovoada que está para chegar, com um ramo risco na terra o teu nome dentro de um coração cheio de nós. A noite também é tua. Talvez num segundo fugitivo pares a tua escrita; talvez com um gesto ligeiro desvies para o lado as brumas que fazem parte de ti e olhes para a lua. E talvez a lua, essa lua minguante que arrasta ao seu lado a tal estrela incógnita, talvez a lua te fale sobre mim. E talvez tu, retomando a tua escrita, me dediques um verso de amor, daqueles versos lindos que fazem parte das serenatas cantadas numa noite quente como esta, no despedir do verão. Um verso só, feito ele noite, lua, outono e amor.

Ama-me, Porque Sim

19.09.22 | Sandra

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É o teu olhar, tão cheio dos reflexos do mar quando o sol nele embate desejos e devaneios.
É a tua voz, espiral de impulsos e infinito, que ressoa dentro de mim como jacarandás em flor, cascatas frescas de poesia, prosa e verão.
É esse teu jeito, jeito de quem atravessou anos-luz só para chegar aquele instante em que te vi pela primeira vez, parado ao longe a olhar para mim.

E desde então, és Júpiter refletido na lagoa de águas escuras onde nenúfares dormem. És placidez, latitude e longitude em mim, lusco-fusco que me adorna a pele nua e faz-me ser menina-mulher uma e outra vez, as vezes que tu quiseres. E como te anseio, um concreto desejo que orbita em torno da minha alma e mordisca docemente como um amante cada recanto íntimo dos meus pensamentos. Ah!, como te gosto tanto! Deixa que a primeira chuva de outono caia e ama-me, porque sim.

Singularidade

14.09.22 | Sandra

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Gostava de te falar sobre o que o mundo ainda tem de belo! Mas talvez o saibas, talvez conheças cada caminho que se enche de um silêncio cheio de sol, talvez até já te tenhas cruzado com significados que não compreendes mas que te levam de volta ao local onde realmente pertences.

Mas não tenho a certeza e, pelo sim pelo não, quero que saibas que eu reconheço e aceito que haja ainda algo de muito belo neste mundo e nestes dias, nos quais a Humanidade ainda se descobre, erra, falha, arrepende e se refaz. Se eu consigo captar essa beleza que permanece, talvez tu também o consigas fazer, afinal viemos de um mesmo universo primitivo, quando partículas subatómicas deambulavam à velocidade da luz sem direção concreta, apenas para em poucos segundos criarem um novo espaço e tempo, e darem origem a tudo aquilo que hoje faz parte da nossa realidade.

Sim, eu consigo reter essa singularidade - as coisas boas que permanecem. Graças a isso, um dia, ao fim de tanto tempo, reencontrei-me. Talvez também tu me reencontres. E talvez nesse instante fiquemos unidos por um mistério mais forte que tudo, algo tão poderoso que lembra as trovoadas repentinas que rasgam céus numa tarde muito quente de verão, enquanto o universo abranda o seu ritmo de expansão e novos dias acontecem.

Esse Azul

08.09.22 | Sandra

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Perdi-me e encontrei-me nesse dia. Não era só o azul. Era esse azul ser ele próprio o próprio mar entornado à minha frente, e que ia até ao azul desmedido do céu selvagem.

Era esse azul ser a infinitude de tudo, a grandiosidade que me deixava fazer parte dos reflexos do sol que ofuscavam a superfície das águas, feitas de uma alma crua e nua como a minha.
Era esse azul autorizar-me a ser eu a gaivota que deslizava entre o passado e o futuro, sacudindo com a força das asas os segundos gastos das horas antigas.
E era ser eu todas as tonalidades azuis que contemplava naquele instante imediato, todas e cada uma dessas tonalidades sucumbindo dentro e fora de mim.

Mas acima de tudo isso, sim, era o azul do mar. Esse azul íntimo que em dias de temporal parece ser verde aceso; que em dias de chuva interminável e triste assume um tom cinzento frio; e que se veste de um tom âmbar sempre que o sol se dilui no horizonte, lembrando fogo refletido num espelho partido em minúsculos pedaços.

Uma vez mesmo julguei ver o mar adormecer por completo a sua cor azulada, ganhar um tom que lembra o chumbo derretido, negro, moldável antes de endurecer, a contrastar com o areal triste e as penas brancas das aves paradas na zona da rebentação. E na falta da sua cor habitual, compreendi.

Sim, o azul do mar lembra olhares que entram noutros olhares, e fazem o mundo diminuir até caber por inteiro na palma da mão - ou no coração que se agita quando sonha muito e quer ainda mais, porque só o sonho não chega.

Compreendi, e desde esse instante (em que o azul foi o próprio mar) entre tantas outras cores amei essa em específico. Fui oceano, fui firmamento, e sonhei contigo pela primeira vez.

Compreendi. É esse o poder do azul quando o azul é mar: faz sonhar.

 

Nota: Desafio Azul

O Signo de Deus

03.09.22 | Sandra

 

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Lá fora, a noite. Sábia, conhecedora dos dias da Terra e dos segredos do mundo. Lua cheia. Incontáveis estrelas espantam-se com a magnanimidade de tudo o que de bom e de belo ainda existe.
Para lá da janela e do jardim, as luzes distantes de casas, ruas, carros. Outras vidas...
E muito acima de tudo, o humanamente visível a olho nu, o esplendor do universo que generosamente nos aceita e mantém. O signo de Deus. Tanto que a humanidade tem ainda a descobrir... haverá tempo suficiente para tudo?

Está muito calor. Só me apetece deixar as roupas caídas pelo chão como folhas cansadas de outono e ficar à janela, esperando que a noite tenha alguma complacência para comigo e me permita tolerar melhor este ar abafado fora de tempo. Mas é tarde, estou cansada e a noite conhece-me bem, compreende que tudo o que eu quero agora é dormir. Os lençóis da cama estão frescos. Deito-me tal como sou, desejando sonhar com o teu beijo, que secretamente quero tanto e tanto em mim...