Um Cão
Saltita o cão entre as horas novas de um ano também ele novo. Ignora a data impressa no jornal pousado no banco, ao lado do seu humano. Ignora as decorações penduradas nas janelas e na rua, bem como toda a azáfama fora do normal à qual ele assiste à sua volta. São coisas que ultrapassam a sua condição, e não lhe dizem propriamente respeito.
Prefere percorrer em corridas alegres os caminhos que o levam até outros patudos, seus amigos, para juntos passarem horas a perseguir pombos, ou a descansar ao sol encostados uns aos outros. Prefere ver os dias tornarem-se de forma silenciosa, demorada e quase impercetível, maiores. Prefere cheirar os aromas intensos que os loureiros e eucaliptos soltam à sua volta após uma grande chuvada. Gosta das coisas simples, bem ajustadas ao seu espírito brincalhão e contemplativo. Coisas que, como ele, adaptam-se gradualmente à passagem das estações ou à fase da lua, e não a números que marcam uma data.
Às vezes fica meio ausente, disperso nos seus pensamentos. É quando as boas lembranças vêm de um secreto lugar entre o coração e a mente, trazidas repentinamente por algo que despertou a sua atenção. O seu semblante torna-se sério. Mas logo passa. Recompõe-se, e depressa volta à sua realidade concreta. Porque o patudo sabe que novas lembranças são construídas a cada instante, e também essas podem ser boas. É uma questão de viver reconhecendo, valorizando e agradecendo as coisas simples e humildes. São as que realmente contam, por serem as mais verdadeiras.
É como com os humanos... esses, os simples e os humildes, serão sempre os melhores, mude o ano as vezes que mudar! O patudo sabe disso, é sábio. Sabe muitas outras coisas! Por isso, com a língua de fora e orelhas ao vento, dá atenção apenas ao que merece ter a sua atenção, relativiza o resto, e saltita despreocupado entre os números de datas ou horas. A sua realidade é essa.
Nota: mais cães em https://cronicassilabasasolta.blogs.sapo.pt/cao-85235