Capital
Na tarde avançada o calor aperta cada vez mais. A cidade pulsa de vida sob aquela chuva lenta e persistente que teima em cair. Os prédios e as torres mais altas, coroados por nuvens pesadas e cinzentas, têm um semblante monótono, indiferente. Transeuntes caminham apressados pelos passeios molhados e escorregadios, mãos enterradas nos bolsos e cabeça baixa, uns indiferentes ao meio, outros, impacientes e fartos daquelas ruas cheias de gente. É impossível circular sem alguém se esbarrar contra outro alguém.
Pessoas ao monte aglomeram-se ao lado do semáforo que parece determinado em não autorizar a travessia da passadeira. O grande relógio digital da torre principal mostra, entre o bloco noticioso, horas que ninguém vê. Os carros, iguais uns aos outros, avançam em marcha lenta, salpicando quem circula do lado de fora do passeio, faróis ligados e limpa para-brisas no seu movimento hipnotizante.
A chuva continua a molhar a cidade que pulsa. O semáforo muda a sua cor para verde e o aglomerado de pessoas desperta da sua letargia para atravessar finalmente a rua.
Os lojistas estão excessivamente animados e atarefados. Os cafés estão lotados. Confusão, calor, barulho, encontrões, gargalhadas, cheiros de comida que se cruzam com cheiros de perfumes. E o dia avança, picado por aquela chuva interminável e pelo calor sufocante de um verão mais quente que o normal.
Com alguma dificuldade em chegar à porta, consigo finalmente sair do café para a rua. Anseio o regresso ao sossego e frescura do lar. Caminho pelo passeio apinhado de gente. Hora de ponta. Pessoas de todos os tipos, géneros, idades, status. Faço um jogo: tento imaginar os nomes de quem me acompanha ao longo dessa caminhada e o que estão ali a fazer naquela hora confusa. Estranhos para estranhos.
Sou acordada desses pensamentos quando alguém que caminha em sentido contrário choca contra mim, ombro contra ombro, prosseguindo em passo apressado a sua caminhada. Num gesto instintivo olhei para trás. Também tu te viraste para trás para pedir desculpa pelo embate. E a cidade desapareceu. Houve um reconhecimento. Em menos de nada, passamos do espanto à curiosidade, do reconhecer, às perguntas que tinham que ser feitas. Alguém amado, cujas mudanças provocadas pela passagem do tempo foi afastado de mim. Relação que parou algures. E ali, sob uma chuva monótona, estávamos nós, estáticos, incrédulos, mudos, olhos nos olhos. A cidade meteu-se entre nós e deixei de te ver. Nessa quente e cinzenta tarde, reescreveu-se a nossa história.