Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Sílabas à Solta

POESIA | PROSA POÉTICA

Coisas de Gato

03.10.20 | Sandra

551554_S.jpg

03h10

O dia há muito que findou. A casa está adormecida na hora tardia. Na noite alta, o gato persegue silencioso ideias vagabundas por corredores longos e mal iluminados. O felpudo dos tapetes abafa qualquer som que as suas patinhas possam fazer. É um gato comum, não é famoso nem vaidoso. Já acumulou vasta dose de vivências e histórias, tem agora idade para roupão, cigarrilha e gin. O gato para nervoso, olha a parede, estático. Sentidos em alerta, pêlo espetado, olhar fixo. Fantasmas? Tranquiliza-se dos seus pressentimentos e entra na grande e escura divisão de soalho velho de madeira envernizada. Seguindo o habitual, senta-se fofo no vasto parapeito de madeira cheio de marcas e desenhos gravados ali por algum canivete. Permanece nesse recanto até acolher a manhã nos seus bigodes altivos.

08h20

Está onde quer, deitado na janela devassa - e naquela janela critica quem passa. Mas hoje o gato tem um olhar diferente, cansado, assanhado. Não liga a carros nem a gente, nem aos pardais farfalhudos que saltitam entre a erva orvalhada. O gato medita! Sabe que a política vai mal, como tudo aliás. De olhar cerrado, arma-se em doutor: faz da janela, assembleia; finge um semblante sinistro, e na sua triste ideia, é ministro que defende medidas e orçamentos!

15h30

Acalmado enfim do seu longo debate a um só miar, deita-se cansado e pesado no parapeito quente, a torrar com o sol da tarde que entra pelo vidro da janela. Medita de novo, o gato felpudo! Mas agora prendem-lhe ideias mais práticas. Avalia dores e amores, penhora receitas da antiga cozinha, elabora teorias da conspiração e critica a literatura, tece duros julgamentos à sociedade: "Nada vale! Nada presta! Nada serve! Diabólico mundo, este!". Está louco, o gato...

20h50

Mas inevitavelmente a noite vem! O gato cansa-se enfim da janela. Folha de jornal debaixo do braço, troca a loucura da vida pela sua condição de patudo, e recolhe-se à sua manta velha, sensata e querida. Aconchega-se e, a ronronar pieguices, adormece feliz de encontro aos seus fantasmas.

3 comentários

  • Imagem de perfil

    Sandra

    03.10.20

    Eu não digo? Muito perspicaz sempre querida Isa! Como leitora atenta, e com espírito analitico, vês sempre para lá das palavras! Muitos beijinhos minha querida e excelente fim de semana 🍀
  • Imagem de perfil

    Isa Nascimento

    03.10.20

  • Comentar:

    Mais

    Comentar via SAPO Blogs

    Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

    Este blog tem comentários moderados.

    Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.