Contemplativo
Adivinho-te nessa chuva miudinha caída do nevoeiro que te trespassa. As gaivotas roucas já partiram, o farol já se calou, os barcos são agora meras formas fantasmagóricas. Ao olhar para ti, o rio pergunta-se o porquê de ali permaneceres há tanto tempo.
As horas surgem atrás de ti, encostam-se às tuas vestes molhadas e pousam a mão no teu ombro. Nem dás por elas. Olhas para lá da linha do intransponível. Não ouves os poucos pássaros que nos ramos se esquecem do frio, e a piar rasgam distâncias chamando por ti. Também não ouves o tinir da ondulação quase inexistente contra a pedra molhada do pontão. O teu pensamento vai mais longe que a distância percorrida pelo Homem neste universo que nos acolhe. Todo o teu foco já arrancou raízes, chicoteou ramos no ar e fez folhas voarem em todas as direções. E tu nem te mexeste. Estás longe.
À tua volta, tudo parece suspenso, estático, e tu és parte síncrona desse meio. Na tua longa introspeção a névoa dissipa-se, a chuva miudinha deixa de cair, as pedras secam, as aves rodopiam e o rio, isento de ti, canta. Despertas enfim desse estado contemplativo, pois a primavera abraça-te pela cintura e amas outra vez com todo o calor do verão. Amo-te eu, também!
Mais contemplação em: https://cronicassilabasasolta.blogs.sapo.pt/comtemplativo-ii-34547?tc=76647209316