Elétrico
Em carris que se afundam no alcatrão esbatido, circula, pintado da cor do sol ou da rosa do amor, o elétrico, transportando as histórias de todos e de ninguém, caladas nos sacos de plástico ou de papel que os passageiros carregam. Por colinas mal disfarçadas, janelas de outros tempos abertas ao barulho do trânsito e das gentes, chia aflito o elétrico, esplêndido, enfrentando vidraças escuras e portadas de madeira abertas às ruas antigas.
Os pombos e os pardais voam para longe dos carris lisos e quentes; e varandas de ferro torcido, pracetas animadas, jardins bem frequentados, bairros históricos, todos interrompem as suas conversas quando o elétrico se faz ouvir numa voz metálica, uma mancha de passado trazido ao presente.
Quando aparece já perto, nostálgico, calmo, rumo a um sinuoso algures, que fica em qualquer lado que a todos pertence, todos se viram para o ver passar: mãos param no ar a jogada de cartas, e peças de dominó esperam pacientemente nas mesas à sombra; namorados interrompem o beijo, o pintor pousa o pincel e o músico junto do quiosque toca com mais nostalgia. Cães deitados à beira do lago levantam o focinho, a dona de casa aproveita e descansa os braços do peso das compras, taxistas sem clientes olham pelo vidro aberto, e turistas preparam a máquina fotográfica. No meio de toda a sua altivez e da história que carrega, passa sempre, para cá e para lá. Passa sempre mas passa sem ti, sem mim.