Fluir
O tempo caminha sob a sua própria vontade, pois não tem como dela escapar: dias e noites sucedem-se num ciclo infindável e desinteressado. Mas é preciso parar. Dar tempo ao próprio tempo. Separar o dia, da noite. E a noite, cúmplice que nunca deserta, já doce me espera. Dispo de mim as roupas que comigo partilharam as horas que já lá vão e deixo-as caídas no chão, junto com sentimentos, ideias, cansaços, receios. Num relaxante banho deixo a água levar o que fui no dia que passou e entrego-me às últimas preces, ao respirar fundo, ao alívio, à noite que toda por inteiro me recebe em si.
Lua cheia. Imensa, sóbria, plácida e firme. Serena, olho-a por longos minutos, ausente de pensamentos. E ela olha-me de volta, dizendo tanto quando nada diz. Estrelas cercam-na e olham-me altivas. Desafio-as, retribuindo o olhar. Mas está frio, fecho a janela e tapo-me com o aconchego quente do quarto. Na penumbra solene e presente, a cama convida-me às horas do embalo, das divagações, dos sonhos e das loucuras. Deixo uma única e ténue luz acesa, e é nela que, descontraída entre lençóis, fixo o olhar, demoradamente.
Penso em tanto... apenas deixo os pensamentos fluírem. E eu sou mera espetadora. A luz continua a fazer refém o meu olhar e a minha mente. Transmite-me serenidade, leveza. Acalma-me. Penso, curiosa, no material do qual a lâmpada é feita, nos filamentos finos, na energia que os faz brilhar e no calor que ela emana junto com a luz. Penso na noite lá fora, no mundo para lá da noite e no universo para lá do mundo. Ligo a televisão, não quero sentimentos profundos a uma hora tão tardia. A vida fica algures entre o meu inconsciente e a noite insondável. Amanhã há mais mas por ora, sou só eu e a noite silenciosa, minha amante.