Hora de Mim
Agora anoitece depressa. Num instante os dias ainda quentes perdem-se no crepúsculo e dão lugar à noite imensa. Fico uns minutos à janela a observar a praceta, enquanto me delicio com o aconchego de um casaco de malha e um café quente, acabado de fazer.
Hoje não se veem as estrelas. O céu parece mais baixo e parece forrado de flanela. Está tudo muito silencioso. Normalmente a esta hora, sob a luz dos candeeiros de rua, ainda brincam miúdos no parque, ainda estão jovens a jogar às cartas nas mesas de piquenique, e ainda os seus cães se divertem a esmagar folhas secas e a roer troncos caídos no relvado, enquanto pássaros barulhentos procuram um lugar para pernoitar.
Mas hoje não, está tudo muito silencioso, como a lua imensa no céu calado, de onde não vem nenhuma resposta. Penso em ti e como seria estares ao meu lado, nesta janela que tão bem conheces das nossas conversas ao longo de tanto tempo. Falaríamos das grandes cidades que estão para lá do oceano que se avista daqui? Dos desertos imensos e das tribos nómadas com os seus rituais e crenças? Do colossal universo e dos seus mistérios para lá da neblina rosada que tapa o firmamento? Falaríamos de poesia, de como se constrói um soneto ou de como realmente se escreve a palavra Acreditar? Começa a ficar frio e cheira a terra molhada, a relva, a madeira a queimar numa lareira. Lembro-me de algo que te disse ainda não há muito tempo:
"Os cheiros fazem milagres. Por eles te perdes, por eles te encontras. Queres encontrar-te? Perde-te!, ainda que essa ideia assuste um pouco, pois o desconhecido assusta sempre. Mas se tiveres medo, tem! E se tiveres que admiti-lo, admite. Isso é ser corajoso!".
Gosto tanto de ti! Na certeza das nossas certezas, fecho finalmente a janela e dou por terminado o meu dia. Agora é hora do conforto pleno, do descanso, de reforçar a fé e temperar sonhos. É hora de saborear tudo o que de bom o outono traz e saber agradecer. É hora de mim.