Irreal
Às vezes parece-me tudo irreal, ou como um sonho estranho: tu, a tua existência, que aos poucos imprimiste em mim, as palavras que outrora trocamos. Lembro-me de, na altura, pensar que realmente poderias ter vindo de outros mundos longínquos, outras eras, tempos distantes, como tu costumavas dizer, aparecendo nas noites para falar de ti. E foi numa noite que chegaste a mim, através de insondáveis palavras que me escreveste.
(Ah, o mundo que a palavra encerra em si...!).
Desde aí, um novo sentimento por ti obrigou-me a um incessante questionar de tanto: as minhas convicções, caminhos, ações, sentimentos. Comecei a gostar de ti. Hoje a noite está linda, o ar está fresco e leve, limpo. Não há vento, e no céu, com uma claridade peculiar em tons púrpura, as estrelas parecem luzir mais ainda. Cheira a terra seca, a relva acabada de cortar, e dois cães perseguem, atrapalhados, uma bola. Ao longe, vejo o pisca-pisca disciplinado do farol, e luzes a tremeluzir nas colinas silenciosas da outra margem. É uma noite boa para apareceres, através das palavras que são parte de ti e que se dissolvem em mim.
Mas és humano, claro. Receios ou orgulhos, a tua arrogância subtil ou cansaço, algo mantém uma distância firme, diluída entre nós e deixa, mais longe ainda, a possibilidade. Talvez seja bom assim mesmo: noites sem respostas, o silêncio marcado entre nós. Também existe um silêncio tremendo na noite. Estradas, parque, a enorme ponte, o parque bem cuidado, o universo e as suas galáxias com estrelas e planetas. E contudo, apesar desse silêncio, a noite continua a ser bela e cheia de sons. Assim, e apesar da distância que se acentua entre nós, e do silêncio que marca o tempo, o sentimento que por ti tenho continua também a ser real e belo, para mim.
Talvez estejas perto, passeando por algum caminho mais reservado, sentado nalgum pacato banco de jardim, ou no significado de algum poema teu. Não te escrevo poemas, não quero. Mas posso oferecer-te uma noite assim, como esta, fluída, para nela navegares nas tuas longas horas despertas. Sim, na noite também se viaja, navegando nas horas paradas onde o sentimento é perspicaz e as dúvidas desfazem-se. Ainda assim, por esta altura, pareces-me irreal. E está tudo bem. Não é nada de novo.