Momento
Crepúsculo. Hora de mistério e transição, em que só conta o aqui e o agora. Trago-te ao momento.
Não há vento, e as horas param vadias no ar estagnado e quente. No intensificar do lusco-fusco, o céu abre-se em tonalidades que rasgam toda a vastidão do horizonte, e ao alto tremem confusas as primeiras estrelas. As árvores transformam-se em negras e sóbrias silhuetas, contrastando com um céu que aos poucos escurece também, em entrelinhas de palavras não pronunciadas entre nós. Vejo bandos de pardais barulhentos a esconderem-se à pressa entre a folhagem espessa dos ramos, que se preparam também para adormecer no abafar de loucuras sem nome.
A noite finalmente chega por inteiro, lasciva, marginal, sobre a praceta, o jardim, o parque e os campos de perfumes nus. A lua quase cheia parece maior e mais brilhante que o costume. Abraçava-a, se fosses tu ali, vagabundo! Oiço algures um melro, e ao longe um cão ladra animado à escuridão que o desafia. Está calor e alguns miúdos ainda jogam à bola no campo seco aqui ao lado. Riem despreocupados e falam alto.
Saboreio sem pressa a minha bebida fresca e olho para a linha definida do horizonte: o farol imponente no seu luzir rítmico, sereno. As luzes acordadas na cidade adormecida, em brilhos que se desfazem. Vivendas solitárias, ladeadas de terrenos selvagens; e no alto da Serra, o Palácio da Pena, mal escondendo os seus mistérios e superstições.
Relaxo, sinto em mim toda a serenidade lasciva que me cerca. E embrenho-me em recordações... há sempre alguém especial que inevitavelmente será lembrado numa noite assim. Deixo-te chegar, quero pensar em ti. O meu coração bate forte num misto de saudade, interrogações, uma vontade louca do quebrar do teu silêncio em palavras desenfreadas, estilhaçadas, quando se dá o "tudo ou nada"! Mas está muito bem assim.
Olho novamente o céu. Termino a minha bebida, inspiro uma última vez o ar quente e seco da rua, e despeço-me a custo da noite provocadora. O seu silêncio é o meu cúmplice; em todas as nuances, o meu amante perfeito.
Fecho a janela e preparo um banho a meia-luz. Sinto este desejo boémio de fechar os olhos e demorar-me no toque lento da água quente no meu corpo, no meu cabelo. Entre as formas do vapor denso que preenche todo o ambiente e embacia o espelho, sinto-me limpar também a alma, regressar a mim, à minha essência, às minhas convicções e à minha esperança. Se estivesses aqui... o teu nome sussurrado. Em corpo de mulher, o meu coração volta a ser pequenino outra vez.