Sabor de Ti
Hoje é uma daquelas vezes em que a noite poderia ignorar o avançar dos ponteiros do relógio e prolongar-se por mais tempo. Está muito calor, apesar do céu forrado de densas nuvens. Nada se move, nem sequer as folhas do jacarandá que marca a curva do caminho. O silêncio é tremendo e há muito que as ruas dormem. Caminho devagar, apesar da hora adiantada.
Gosto de noites assim. Lembram-me de ti e do poder que sempre tiveste sobre mim, desde o primeiro início em que me chamaste à tua escrita. Sei que estás acordado também, preso ao emaranhado da tua escrita - ou aos teus antigos fantasmas. As tuas palavras são feitas de sentidos que ainda hoje estou a descobrir. Têm um poder próprio, primitivo, como se fossem feitas de letras muito antigas, caídas dos séculos que passaram, mas ainda cheias de substância, magnetismo, oculto. E tu usas essas letras como ninguém.
Trouxeste-as contigo de lugares distantes, por onde passaste quando eu ainda não sabia de ti, para espalhares cada traço em redor das minhas sílabas. Estás em cada uma delas, em cada palavra que corre pelas civilizações construídas pelo homem, com torres que rasgam as nuvens; na vastidão imensa da noite quente do deserto, quando um coiote solitário uiva à lua crescente, e para lá do horizonte, carros cruzam em silêncio autoestradas largas e bem iluminadas. Nas florestas cerradas que escondem trilhos e lendas, em recifes de corais onde a vida calada acontece.
Tu sabes. Estás em todo o lado. Entre o mar e a Serra, venceste. Já não sei não te ler. E é assim que deve ser: tu escreves, eu leio, ainda que nada te diga. Mas até esta noite quente, calada e parada, sabe a ti. É bom. Pego nas memórias boas que me deixaste, e meto-as na cama comigo.